A vastidão do mar (da mente)
As tempestades representam os momentos em que o sujeito é tomado por forças emocionais avassaladoras, como a paixão, o ódio, o ciúme ou o desespero
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 03 de fevereiro de 2025
As tempestades representam os momentos em que o sujeito é tomado por forças emocionais avassaladoras, como a paixão, o ódio, o ciúme ou o desespero
Sylvio do Amaral Schreiner

“O coração do homem é muito parecido com o mar, ele tem suas tempestades, suas marés e suas profundezas; ele tem suas pérolas também” disse Van Gogh. Comparar o coração humano ao mar é mais do que uma metáfora poética; é um convite a explorar as profundezas do mundo interno, onde coexistem forças primordiais de criação e destruição, tranquilidade e tormenta, superfície e abismo. Assim como o mar, o coração humano é vasto, imprevisível e rico em significados, abrigando camadas que vão do visível ao inconsciente mais profundo.
As tempestades representam os momentos em que o sujeito é tomado por forças emocionais avassaladoras, como a paixão, o ódio, o ciúme ou o desespero. Essas tempestades psíquicas frequentemente surgem como respostas a conflitos internos não resolvidos, aos encontros com o desejo ou à frustração de expectativas. Na clínica psicanalítica, essas tempestades podem aparecer na forma de sintomas e sofrimentos.
Por exemplo, um paciente que se encontra em um ciclo de relações destrutivas pode estar repetindo inconscientemente um padrão vinculado a experiências da infância. Cada nova tempestade amorosa revela não apenas o desamparo original, mas também uma tentativa de reorganizar o caos psíquico, como se as ondas violentas buscassem, em sua força, moldar algo novo e compreensível.
O mar profundo, escuro e misterioso evoca o inconsciente, esse território vasto onde residem desejos, traumas e memórias esquecidas. O mergulho no inconsciente, facilitado pela escuta psicanalítica, é um processo que exige coragem, pois nem sempre as profundezas revelam imagens belas. Muitas vezes, o que encontramos são medos, feridas e conteúdos reprimidos que emergem como monstros marinhos que habitam os contos de fadas e mitologias.
Porém, como Van Gogh sugere, também há pérolas no fundo do mar. Essas pérolas, frutos de um processo de transformação, representam os aspectos mais preciosos do psiquismo humano: a capacidade de simbolização, de criar sentido, de amar e de sonhar. Na clínica, essas pérolas podem emergir como insights inesperados, novos caminhos de identificação e a possibilidade de ressignificar a própria história.
A literatura, a arte e o cinema frequentemente exploram essas dimensões do coração humano. No romance "Moby Dick", de Herman Melville, o capitão Ahab é dominado pela tempestade do desejo de vingança, enquanto os marinheiros enfrentam a vastidão e o mistério do mar que espelha seus próprios conflitos internos. Já no filme "A Forma da Água", a água funciona como metáfora para o amor que se desenvolve nas profundezas, longe da superfície de normas e julgamentos sociais.
Van Gogh, ao comparar o coração humano ao mar, nos convida a reconhecer a riqueza da experiência emocional em sua totalidade — a tempestade que destrói e renova, as marés que regulam o fluxo da vida psíquica, e as profundezas onde habitam os tesouros mais preciosos e os monstros mais temíveis. Na perspectiva psicanalítica, explorar esse mar interno é a tarefa de quem busca conhecer-se, transformar-se e alcançar uma vida emocional mais plena. Assim, tal como o marinheiro que navega em águas desconhecidas, o sujeito que se aventura no próprio coração descobre que, embora a travessia seja desafiadora, ela traz a possibilidade de encontrar não apenas pérolas, mas também a si mesmo.
Sylvio do Amaral Schreiner é psicanalista e atende há mais de 20 anos em Londrina. [email protected]

