- Tornando a vida suportável -
Somos criaturas lançadas no mundo, frágeis e vulneráveis, mas dotadas de uma consciência que nos permite perceber nossa finitude
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 03 de março de 2025
Somos criaturas lançadas no mundo, frágeis e vulneráveis, mas dotadas de uma consciência que nos permite perceber nossa finitude
Sylvio do Amaral Schreiner

O ser humano se vê, desde o nascimento, diante de um paradoxo inescapável: somos criaturas lançadas no mundo, frágeis e vulneráveis, mas dotadas de uma consciência que nos permite perceber nossa finitude. Desde os primeiros momentos de vida, confrontamo-nos com a angústia primordial da existência: a experiência da falta, do desamparo, da incerteza. O escritor Ariano Suassuna, com sua sensibilidade poética, nos aponta dois caminhos para enfrentar essa condição trágica: o sonho e o riso: “No meu ver o ser humano tem duas saídas para enfrentar o trágico da existência: o sonho e o riso”.
O sonho, no sentido psicanalítico, não se restringe ao devaneio ou ao desejo ingênuo de escapar da realidade. Sonhar é o que nos permite transcender o presente imediato, projetando possibilidades, criando ficções, atribuindo sentido à existência. Freud, em A Interpretação dos Sonhos, nos mostrou que os sonhos são a via régia para o inconsciente, um espaço onde desejos, angústias e conflitos se expressam de forma condensada e simbólica. Sonhar, na vida desperta, significa permitir-se um espaço interno de criatividade e transformação, no qual o sujeito pode reelaborar suas experiências e se reinventar diante das adversidades.
Já o riso, outra saída apontada por Suassuna, tem um poder subversivo. O humor, como nos ensina Freud em O Chiste e sua Relação com o Inconsciente, opera como uma forma de liberar a tensão psíquica, de transformar o peso do sofrimento em leveza, de dizer o indizível por vias inesperadas. O riso desarma a rigidez, introduz o inesperado e nos ensina que a tragédia pode ser vista de outro ângulo. Diante daquilo que não podemos mudar, o riso nos dá o direito de não nos tornarmos reféns do sofrimento.
Porém, não há um único modo de enfrentar o trágico. Nossa resposta à vida não é automática, mas construída ao longo da história de cada um, a partir das experiências emocionais, das relações primordiais, dos recursos psíquicos disponíveis. Diante da dor, um sujeito pode se entregar à desesperança, ao fechamento psíquico, ao ressentimento; outro pode transformar essa dor em criação, em narrativa, em busca de sentido. A qualidade de nossa experiência está diretamente ligada à forma como conseguimos simbolizar o que nos acontece.
Muitas vezes, quando o sofrimento se apresenta de forma bruta e insuportável, o psiquismo recorre a defesas que limitam a experiência: a negação, o evitamento, a repetição compulsiva de padrões que tentam dar um contorno ao caos interno. O sonho e o riso, por outro lado, são vias de elaboração, que permitem que a vida não seja apenas suportada, mas transformada. Eles são formas distintas de construir uma relação com a própria dor, de criar espaços internos onde o trágico pode ser vivido sem ser devastador.
O que Suassuna nos propõe, portanto, não é um convite à alienação, mas à invenção de formas mais criativas de existir. Sonhar não é negar a realidade, mas ampliá-la. Rir não é fugir da dor, mas recusar-se a ser esmagado por ela. Entre a melancolia paralisante e o otimismo ingênuo, há uma terceira via: a de um olhar que acolhe o absurdo da vida sem se render ao desespero, que reconhece a tragédia sem abdicar da esperança. Na psicanálise, encontramos esse olhar quando compreendemos que, se a vida nos impõe limites, cabe a nós descobrir como habitá-los sem que se tornem prisões.
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A opinião do colunista não é, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina

