Estava sozinho, quarentenado, numa abafada noite de Natal. Decidira não procurar os amigos, pois a maioria mostrou-se um tanto avessa a encontros presenciais. E como nenhum propôs um evento on-line, restou ao nosso herói ficar quietinho em casa, na companhia de um peru assado, algumas frutas, um frisante gelado e a tv ligada. Negou-se a vadiar na internet. Sabia que isso o deprimiria.

E de repente, quase como um insulto, toca seu telefone. Não o celular, que desligara pra não ser procurado, mas o fixo, que ficava num canto obscuro de seu escritório. Atendeu com um esgar de perplexidade e má vontade.

- Alô.

- Oi. Eu sou o espírito do Natal 2020.

- Espírito de porco?

- Quê?

- Nada.

- Estou ligando pra saber o que o senhor aprendeu esse ano.

- Não aprendi nada. Só sofri e reclamei.

- Jura?

- Por Deus.

- Mas sofrer e reclamar te ensinou alguma coisa?

- Acho que sim.

- Tipo o quê?

- Me ensinou a sofrer e a reclamar sem fazer escarcéu e sem encher o saco dos outros.

- Olha aí que beleza. Já não é alguma coisa?

- Me diz você, que sabe tudo.

- Eu não sei tudo.

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. | Foto: Aquarela: Adriano Garib

- O que quer comigo?

- Te fazer companhia.

- Não quero sua companhia.

- Tem certeza?

- Não tenho mais certeza. Essa foi outra coisa que esse ano me ensinou.

- Olha aí que beleza. Te ensinou a não ter certeza?

- Com certeza.

- E suponho que o senhor já tenha entendido o que aconteceu, não?

- Não, não entendi. Tou atrasado nessa parte.

- Qual parte o senhor não entendeu?

- A parte principal.

- Que seria?

- A causa.

- As causas são misteriosas. Nesse caso, é mais prudente deter-se sobre as consequências. E providências. E prevenções.

- Mas se nos for dado conhecer as causas, saberemos contornar o problema, não?

- Será? Saber por que vem o tsunami lhes dá o poder de evitá-lo?

- De evitá-lo não, mas de enfrentá-lo talvez.

- Talvez.

- Então, aí vai meu pedido.

- Sou todo ouvido.

- Que a gente aprenda, enfim: a prevenção é a melhor cura.

- Mas como se prevenir de algo que não sabes exatamente o que é?

- Pois é, ficar imaginando ameaças faz mal pra saúde.

- Mas precaver-se de males inevitáveis é o mel da sapiência.

- E da ciência.

- Assim, ao espírito do Natal só resta desejar ao senhor, a todos, a melhor saúde possível.

- Saúde! Só isso?

- Acha pouco?

- Acho muito. Mas e quanto ao resto?

- O resto é muita coisa. Posso tentar resumir?

- Tou aqui pra ouvir.

- Saúde pública é assunto sério demais. Aprender a parar e reciclar é tão importante quanto trabalhar. Não somos super incríveis, somos falíveis. Valorizar família e amigos é imprescindível. Solidariedade é um fundamento que nos define como seres civilizados. A natureza precisa de um descanso eventualmente, assim como nós. Precauções simples evitam mortes. Ter vida é mais importante do que ter o resto. Feliz Natal, meu jovem!