Esta é a 30ª crônica que escrevo aqui. Assim, o assunto de hoje é a palavra.

Li há algum tempo, na revista Piauí de julho de 2020, uma reportagem intitulada “A Palavra e o Vírus”, assinada por Leila Guerriero. A jornalista argentina discorre sobre escritores latino-americanos e espanhóis num longo artigo em que muitos admitem estarem passando por um bloqueio de inspiração.

Boa parte dos entrevistados concorda que naquele momento (todos em quarentena há 4 meses) parecia difícil contar histórias. Como criar em meio a uma pandemia de proporções globais? O sentimento de opressão, confusão, impotência e a tremenda dificuldade de reduzir a esquemas narrativos a complexa realidade é quase unânime nos depoimentos.

Razões não faltam. Em condições “normais” estamos sempre atrasados frente ao fluxo dos acontecimentos. O escritor corre atrás de sentidos como um maratonista e poucos logram obter bons resultados. Acresça-se a isso o súbito desamparo humano num mundo acometido por um vírus letal (e, até aquele momento, pouco conhecido e sem vacina à vista), junto a um isolamento social sem precedentes e a um contundente luto coletivo… O resultado dessa terrível equação torna alguns aspectos de nossa humanidade um tanto difusos, quando não inexprimíveis no plano literário.

.
. | Foto: iStock

Para não poucos escritores, versar sobre a peste em meio a peste é como tentar descrever a tempestade no olho do furacão: perde-se o panorama geral e a cegueira é inevitável, o que gera imprecisões. Outros advogam o escritor que não tem com os fatos o mesmo compromisso do jornalista. Para estes a função do narrador é menos “revelar a realidade” do que rearranjar os elementos, de modo a nos convidar a ver ou pressentir o que se esconde por trás dos fatos. Muitos também se queixam do incômodo de tangenciar a pandemia como tema, pois é como se estivessem mudando de assunto na hora errada. Recentemente, vi no Facebook um comentário sintomático a esse respeito: “Se é difícil fazer sínteses literárias sobre o que estamos vivendo, mais espinhoso me parece fingir que isso não está acontecendo.”

Resumo da ópera: escrever sobre a pandemia é um tour de force, não escrever é um acinte! Estamos envolvidos por uma sucessão tão drástica de eventos que parece impossível falar de um mundo livre dos transtornos atuais.

Isso tudo, a meu ver, é reflexo inevitável dos abalos psicológicos causados pela situação, aparentemente incontornáveis num primeiro momento. Mas a vida continua e é preciso seguir em frente. Para os escritores, isto significa escrever, não importa sobre o quê. Espero que muitos já tenham compreendido que versar sobre o drama que ora nos abate é sim viável (embora desafiador) e que narrar histórias fora desse contexto é igualmente legítimo e necessário, pois mesmo sem pandemia nossa jornada sobre a Terra é dramática o bastante.

Quanto ao resto, estou de pleno acordo com o senso comum: enquanto houver leitores, haverá escritores. Como também concordo com a hipótese radical de Rubem Fonseca, segundo a qual ainda que os leitores desapareçam, os escritores seguirão a escrever.