Cada qual tem as suas. Inevitável rememorá-las a cada ano. Não foi um acontecimento qualquer. Parecia o início de uma guerra, o caos da virada do milênio, o anúncio de tempos difíceis (o que, de alguma forma, acabou sendo)…

.
. | Foto: Julian Estevan/ Folhapress

Duas décadas transcorreram e a humanidade tornou-se ainda mais inapreensível, espantosamente complexa, irredutível a explicações, refratária a teses, acordos ou soluções, abertamente conflituosa e polarizada, sempre à beira de um “ataque de nervos”, bem mais próxima das temíveis consequências do aquecimento global (que já se fazem sentir com frequência cada vez maior), vulnerável a pandemias, superlotada e hiper competitiva, abarrotada de dados e vozes e informações confusas, virtual mais que real… e tantas outras coisas que fazem desse mundo um lugar perigoso.

Onze de setembro de 2001. Despertei sozinho em meu apartamento no Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Ainda deitado, liguei a televisão como quem liga o rádio, algo que não tenho o hábito de fazer ao acordar, e a imagem que aterrorizou o mundo salta da tv, para minha total perplexidade. Devo ter pensado mais ou menos o mesmo que muitos imaginaram ao darem de cara com um avião se chocando com o maior edifício de Nova Iorque: é o caos, a guerra, o fim do mundo!

O mais curioso: aquele era o dia da estreia de uma produção teatral intitulada “Na solidão dos campos de algodão” (texto do francês Bernad-Marie Koltès, com direção do amado Paulo José), onde eu performava ao lado de Paulo Trajano, ator carioca dos bons, numa situação cênica sintomática: dois estranhos se esbarram num beco urbano de uma grande cidade e tentam dialogar, mas não conseguem se entender; ambos parecem ter suas razões, mas isso não é o bastante para apaziguá-los; um é o “dono do beco”, o outro o “estrangeiro invasor”; o dono do beco quer negociar com o estrangeiro, mas este se nega a qualquer acordo, sobretudo por não ter a devida “familiaridade” com o outro; após um longo diálogo, permeado de desconfianças e hostilidades de parte a parte, além de francas agressões verbais, o estrangeiro encerra a conversa propondo: “Então, qual é a arma?” E a peça termina, sem que tal pergunta seja respondida.

Chegamos ao teatro naquela terça-feira nublada e mal nos demos conta do contexto incrivelmente coincidente entre a “tragédia do século” e a trama da obra que estávamos prestes a encenar ao público pela primeira vez. Somente depois da sessão, ao nos reunirmos para conversar, notamos o óbvio: o drama versava, de modo direto e indireto, acerca das motivações causadoras do terrível evento daquela fatídica data. Na peça, o autor nos alerta para o elementar: se diálogos, afetos e tentativas de acordo não bastarem, só armas nos restarão.

Essa foi, sem dúvida, a sincronicidade mais extraordinária que já vivi. Realidades engendram ficções, ficções revelam realidades. O que me faz crer que não deveríamos desprezar nossas ficções; elas podem nos indicar caminhos. Bom talvez seja lembrar que entre bons e maus caminhos, não existem fáceis.

Boa semana a todos!

Os artigos publicados não refletem, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina.

...

Receba nossas notícias direto no seu celular, envie, também, suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link wa.me/message/6WMTNSJARGMLL1