Há exatamente um ano e 10 dias o mundo foi confrontado com uma das obras de arte mais provocadoras de nosso século. Refiro-me ao filmaço “Coringa” (Joker), lançado em 03 de outubro de 2019. Apesar de sua bilheteria astronômica (1,074 bilhão de dólares), a obra causou furor nos mais conservadores, causando controvérsias polêmicas e até proibições por causa de seu caráter anárquico e violento e por supostamente incitar a revolução. Hoje o filme está disponível em várias plataformas de tv paga. Não recomendo às crianças, mas aos adultos apreciadores de um bom filme só tenho uma coisa a dizer: não deixem de ver!

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. | Foto: Adriano Garib

O longa-metragem, na opinião desse cronista, não é só o melhor filme da década, é um dos melhores filmes já realizados. O mesmo vale para a atuação de Joaquin Phoenix, algo impensável antes dele. A produção, na batuta sagaz de Todd Phillips, tem o impressionante mérito (quase uma bruxaria) de nos enfiar na pele de Arthur Fleck, o clown decadente na metrópole devastada por uma desagregação sem precedentes, onde a tônica recai sobre o velho problema da desigualdade social levada ao limite do intolerável. No decorrer de duas angustiantes horas, cada reação do protagonista parece plenamente justificada pela inominável opressão que o encurrala. A gênese do vilão da DC Comics se desdobra da perspectiva de uma autêntica vítima do sistema, alguém que sofre de severos distúrbios psíquicos e é abandonado a própria sorte, tendo que sobreviver e cuidar da mãe doente num apartamento apertado da periferia. A ação se passa numa Gotham City que nos remete diretamente a Nova York dos anos 1970/1980, quando os índices de criminalidade atingiram patamares altíssimos por lá.

A direção opta por um tom ostensivamente distópico e faz uma interessante inversão: ao invés de ambientar a história num futuro próximo, narra-a num passado próximo, o que, substantivamente, faz pouca diferença. O que fica subentendido é que se avançarmos algumas décadas estaremos em situação muito similar a de algumas décadas atrás: caos e sombrias perspectivas de futuro. Já no mundo de agora, maquiado por simulacros e estéril por condição, seria talvez inócuo contar a saga de um excluído que se revolta. Ninguém mais se revolta nesses dias absurdos: ou estão perplexos e ocupados demais para tanto ou empenhados em defesa de causas específicas que pouca diferença farão no cenário sem saída e ultra reacionário do final da segunda década do século XXI. Apesar disso, fica clara a sofisticada intenção dos realizadores do filme: adotam o ambiente caótico do anos 1970/1980 para falar de nossa atual situação com maior potência, ironia e distanciamento crítico. Roteiro, direção, arte e trilha sonora, aliadas a uma das mais impressionantes atuações da história do cinema (Phoenix), se encarregam de nos atirar no olho de um vórtice indescritivelmente real, adulto e icônico (talvez o filme mais representativo de nosso tempo atual), cujo efeito maior é o de nos alertar sobre as revoltas que certamente virão. E, ao que parece, virão com tudo.