Literatura, doce refúgio. Algo que teimamos em acender quando as sombras se acercam. Para mim, nada há de tão terapêutico quanto vasculhar a cabeça à cata de certa organização através da palavra. Isso nada resolve, mas aplaca umas dores e, mais que tudo, alivia a solidão. Nossas ficções nos fazem a mais cálida companhia. Quem insiste em escrever bem sabe.

Imagem ilustrativa da imagem A mais cálida companhia
| Foto: Adriano Garib

James Joyce teria escrito “Finnegans Wake” em decorrência de um surto psicótico. Se é fato ou não, jamais saberemos. Difícil, senão impossível, urdir obra tão vasta e complexa sob os sintomas de uma psicose. Não desacredito, apenas duvido.

Camões, dizem, naufragou em alto-mar na companhia de sua amada e de uma mala com seus escritos; preferiu salvar a mala e deixar a amada ao sabor da sorte; não há como julgá-lo, só ele sabia o que tinha na mala.

Kafka ameaçava atear fogo em suas “garatujas”, mas - objeta Borges - sequer foi capaz de acender o fósforo. Flaubert, perfeccionista obsessivo, esteta compulsivo, levava anos para terminar um romance. Proust passou a vida a limpo em 7 extraordinários volumes.

Dostoiévski não parava de escrever nem mesmo no leito de morte de sua esposa. Oscar Wilde - detido por sodomia numa Inglaterra vitoriana, protestante e moralista - foi fundo em “De Profundis” para suportar as misérias da prisão.

O chileno Roberto Bolaño, ao pressentir a própria morte, quis deixar uma série de 5 longos romances como espólio à sua família, segundo ele, para garantir a sobrevivência dos seus. E todo esse esforço em nome de quê? Eis a tola pergunta. Macieiras dão maçãs, cães ladram, gatos miam… Escritores escrevem.

Já para os leitores, a onda é outra. Quem recebe um livro e não o lê é como quem recebe uma carta e a ignora. Pergunto-me se alguém já recebeu uma carta e não a abriu. Ou abriu a carta, deu uma espiada e a deixou de lado, sem lê-la até o fim. Sim, é de se supor que isso já tenha ocorrido. E nesse caso, o destinatário há de jogar a carta no lixo, por uma razão ou outra.

O que é de fato curioso, relativamente aos livros, é a pessoa largá-lo numa instante, na intenção de vir a lê-lo um dia. Não conheci ainda quem tenha lido um livro tempos depois de tê-lo recebido. Meu caso é clássico: se não o leio imediatamente, sequer o folheio. Fico então a imaginar alguém que tenha lido um livro anos após tê-lo recebido e tenha sido surpreendido. Esse hipotético leitor talvez não suspeite que a literatura é um tônico poderoso não apenas para quem escreve, mas especialmente para quem lê.

Uma amiga argentina mostrou-se sagaz leitora dos meus escritos. Mal domina o português e, ainda assim, fruiu de admirável leitura, com apaixonado interesse. Fez considerações sensíveis ao que leu, todas pertinentes. E, mais uma vez, me assombra a pergunta: por que aqui é tão raro leitores assim? Poucos leem? Literatura não é o nosso forte? É lastimável nossa educação? Ninguém se importa? O céu de hoje anda abarrotado de dados? Nenhuma resposta me consola, pois nenhuma justifica o silêncio do leitor.

Sigo escrevendo, apesar disso. Convivo bem com tantas indiferenças, uma a mais uma a menos…