Grande noite a do último sábado. Inesquecível e profundamente amorosa. Não fosse Maria Bethânia e seu divino dom de nos afagar a alma, estaríamos um tanto mais desolados no primeiro não-carnaval de nossas vidas. Mas após alguma hesitação, a diva aceitou fazer uma live pela Globoplay. Que sorte a nossa!

Mesmo virtualmente, Bethânia é capaz de manter o rigor artístico e encantatório de seus shows. Abriu a live com uma versão a capela de “Explode Coração”, de Gonzaguinha, sucesso emblemático que marcou sua carreira. Em seguida declarou: “Eu quero vacina, respeito, verdade… e misericórdia.” Depois cantou parte do repertório de seu próximo disco de inéditas (“Noturno”, a ser lançado daqui a algumas semanas), sucessos antigos e gratas surpresas.

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. | Foto: Van Campos Fotoarena/ Folhapress

A escolha da data não foi casual. O evento foi uma comemoração de sua estreia nos palcos cariocas, quando substituiu a cantora Nara Leão no elenco do musical “Opinião”, em 13 de fevereiro de 1965. O espetáculo, dirigido por Augusto Boal, foi um dos baluartes de contestação do período da ditadura militar no Brasil.

Se considerarmos o tom litúrgico de seus shows, onde todo gesto e toda palavra adquire um caráter sagrado, assistir a uma apresentação de Bethânia é mais que diversão superlativa, é antes uma experiência extraordinária. Em meio ao porre da pandemia, ela nos faz ver que este país é de uma riqueza cultural inquebrantável e que nada será capaz de abalar nossa potência criadora.

Depois de surpreender cantando “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil (outra bela provocação), Maria Bethânia sentou-se em seu trono - uma vistosa cadeira de madeira devidamente preparada para este momento - e declamou, no seu vozeirão hipnotizante, o “Poema do Menino Jesus”, de Fernando Pessoa. Este, para mim, foi o epicentro afetivo da live, pois aí, numa prece profunda, através da alegoria do Menino Jesus, ela nos faz sonhar de olhos abertos ao nos fazer “entender” que sem sonhos, sem desejos, sem projetos de futuro e sem amor estaremos perdidos. Que outro recado seria mais essencial que esse?

Noutro recado que merece menção, dito entre uma canção e outra, ela cita os versos da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen: “Apesar das ruínas e da morte,/ Onde sempre acabou cada ilusão,/ A força dos meus sonhos é tão forte,/ Que de tudo renasce a exaltação/ E nunca as minhas mãos ficam vazias.”

A live está disponível na plataforma Globoplay, em sinal aberto. Não se deixe abalar nesta terça-feira gorda sem folia. Assista ao show no conforto de seu lar e entenda por que uma récita de Bethânia equivale a mil bons programas. Sugestão: não deixe em volume baixo. Um evento desse nível requer volume alto e concentração. Boa viagem!