Ontem eu tive um sonho estranhíssimo. Sonhei que continuava o mesmo Paulo de 25 anos atrás: aquele Paulo esquerdista, ateu e perdido, que desejava imensamente uma revolução para corrigir todos os males do mundo.

Imagem ilustrativa da imagem Se eu ainda fosse esquerdista
| Foto: iStock

Esse Paulo continuaria morando no velho apartamento da rua Cacilda Becker. No começo, os vizinhos se desesperariam com aquele morador que em algumas noites fazia balbúrdias e levava os amigos para tocar violão às duas da madrugada. Mas, com o passar dos anos, acabariam se acostumando ao ser pitoresco, agora finalmente um velho senhor lelé da cuca, que não faz mal a ninguém, só a ele mesmo.

Esse Paulo todos os dias iria comprar cerveja no posto da esquina, depois botaria na vitrola alguns velhos discos de vinil da época da república, quando todos eram jovens e ninguém se preocupava com a vida. A noite iria passando, ele ligaria a televisão sem som para ficar olhando as caras dos comentaristas nos canais por assinatura, tentando dublá-los como se fossem personagens de um filme esquecido, até que o cansaço e o tédio o fizessem dormir de roupa e de sapato no sofá da sala, até mais ou menos 11 horas da manhã.

Esse Paulo sentiria muita saudade do pai e da mãe, que já lhe teriam deixado há muito tempo, mas também de sua querida Vó Maria, da qual conserva ainda a velha imagem de Nossa Senhora Aparecida, que às vezes parece chorar — vejam só que ideia absurda, uma santinha chorar.

Admirado pelos estudantes de Comunicação, que lhe considerariam uma espécie de guru jornalístico, esse Paulo esquerdista seria hoje filiado ao PSOL, lutaria pelo aborto, pelo feminismo, pelos índios, pelos negros, pelos LGBTQ+, pela Amazônia, pelas políticas de gênero, pela universidade pública-gratuita-e-de-qualidade, sempre com uma leve impressão de que é fácil amar a humanidade, mas impossível amar o próximo.

Esse Paulo esquerdista não quereria nem ouvir falar de casamento, de família, de filhos. Sentiria saudade de suas ex-namoradas, para quem ligaria às vezes, no meio da noite, completamente bêbado — um hábito tão comum e tão repetido que deixaria de ser um problema, ele até se tornou amigo dos atuais maridos de suas ex.

Esse Paulo esquerdista teria abandonado toda e qualquer ilusão quanto à política institucional, que nunca foi mesmo a sua praia, mas continuaria dando seu apoio à campanha Lula Livre, embora achasse que presidente mesmo tinha que ser o Guilherme (esse que os fascistas chamam de Boulos). Esse Paulo esquerdista participaria de todos os protestos pela educação e contra o capitalismo. Para ele, vivemos tempos de trevas, tempos sombrios, anos de chumbo. Embora nunca tivesse apreciado a canção — uma das piores dos Beatles —, o Paulo esquerdista levaria seu violão nos protestos para cantar “All you need is love”.

Sim, ele precisaria mesmo de amor. Não esse amor do John Lennon, esse amor estúpido e egoísta, esse amor drogado e demoníaco, mas o amor simples que ele vira às vezes, de relance, no sorriso de uma garota com quem estudara na faculdade, ou nos olhos de uma criança bem pequena, ou nas mãos de alguém que o resgatou bêbado de cair numa festa do Cabaré, ou numa sonata de Chopin.

O amor de Deus.

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