Há uma cena inesquecível no filme “Morangos Silvestres”, de Ingmar Bergman, quando o velho professor Isak Borg, durante uma viagem, visita a casa de sua infância e lá reencontra seus familiares há muito tempo desaparecidos. Posso dizer que nesta semana vivi uma experiência tão feliz quanto a do personagem de Bergman. Graças a uma amiga, a escritora Juliana Amato, fiz uma pequena viagem espiritual de volta à minha infância paulistana. Recentemente, Juliana mudou-se para um apartamento na Rua Vitorino Carmilo, no bairro de Campos Elísios, a poucos metros do edifício em que morei com meus pais e minha irmã de 1976 a 1982. Ela fez a gentileza de presentear-me com algumas fotos de fachada do Edifício Juréia (na época, acentuava-se a palavra).

Imagem ilustrativa da imagem A casa da minha infância
| Foto: Juliana Amato - Divulgação

Era um apartamento pequeno, mas fomos felizes ali. É incrível, mas eu testemunhei o nascimento do Edifício Juréia. Em 1975, quando ainda morávamos no apartamento de Alameda Barão de Limeira (menor ainda, e alugado), pude observar, da varanda onde brincava, um prédio sendo erguido a duas quadras. Primeiro, as vigas de madeira; depois, os tijolos; depois, o concreto e a pintura; e, durante todo o tempo, o vaivém dos operários em construção. Um dia, eu disse:

— Pai, vamos morar naquele prédio?

Dito e feito. Mudamos em julho de 1976, quando eu completei 6 anos e a Fernanda fez um aninho.

O apartamento ficava no segundo andar, número 22. A vista não era das mais glamourosas: apenas prédios, os fundos da revista Convívio (onde trabalhava um jovem jornalista colombiano chamado Ricardo Vélez Rodríguez) e um galpão de cimento que chamamos de playground e também era o estádio do Jumeiras Futebol Clube (Jumeiras é uma mistura de Juréia com Palmeiras, time pelo qual eu e meus vizinhos Marcelão, Marcelinho e Mário torcíamos).

À noite, quando meu pai chegava do banco, sempre trazendo uma sacola de papel com dois Danys de chocolate — um para mim, outro para a Fernanda —, eu e ele jogávamos xadrez. Ele sempre vencia, sempre. Estava me ensinando a viver, e viver é jogar sério.

No quartinho de despensa, eu instalei meu gabinete de astrônomo amador. O duro é que eu era um astrônomo sem telescópio, equipamento muito caro para adquirirmos à época. Tinha apenas um binóculo, que utilizava em brincadeiras de exploração arqueológica na garagem do condomínio — lar do Fusca laranja, do Fusca Bege e da Brasília verde que se sucederam como carros da família naqueles anos. As placas do Fusca laranja começavam com DE (não me lembro os números); as do Fusca Bege, com KH (ríamos muito); e a da Brasília eu lembro de cor: UM 1270. DE KH UM. Eu já era bom de trocadilhos infames na época.

De vez em quando, eu e os outros atletas do Jumeiras F. C. irritávamos o zelador do prédio, Seu Bill, que morava com a esposa em uma quitinete no último andar. Mas ele era um bom homem, alguém que zelava por nós. Seu Bill hoje está fazendo companhia a São Pedro, padroeiro dos zeladores deste mundo. Lá no Céu, os anjos não costumam brincar de tocar o alarme do elevador... Ou costumam? Talvez existam anjos bagunceiros, piás de Céu.

Obrigado, Juliana.