Bacurau”, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um desses filmes que entram na vida das pessoas para lá permanecer. O longa-metragem provoca inquietações e desafia a criticidade. A pequena vila entranhada no sertão pernambucano sugere quais metáforas para compreender a sociedade brasileira? No fim das contas, a violência é mesmo a única parteira da história?

Imagem ilustrativa da imagem Vou-me embora pra Bacurau
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Invasões são ameaças cotidianas. O corpo humano é uma galáxia ocupada por males invisíveis e discursos conservadores que julgam poder definir o que ele pode ou não ser e fazer. Palavras e agentes alienígenas cobiçam corpos para dominá-los. Obter controle sobre o corpo dos outros é requisito para fabricá-lo segundo conveniências que vão da política institucional à religião oficial (e as oficialescas também), da economia dos mercados à troca simbólica de afetos e paixões. Se fosse a pequena Bacurau, o corpo humano seria lugar de obscuros conluios entre um poder egoísta que intui subjugá-lo para a realização de seus interesses mais atrozes e uma rifa sem graça, com cujo mísero prêmio é possível se divertir sem responder a nada nem ninguém. Nesse sentido, a Bacurau corporificada vale muito pouco para aqueles que a veem de fora sem senti-la à flor da pele.

Os antagonistas da tragédia anunciada: um prefeito populista e meio playboy, que fotografa a entrega de livros inúteis (uma espécie de Fahrenheit 451 pós-moderno), comida estragada e remédios vencidos, e meia dúzia de neofascistas que, vindos de “terra civilizada”, compram o que estiver à frente para matar a subespécie de sertanejos. Aprendiz de coronel e gringos se unem numa imensa paranoia: valer-se de gente aparentemente simples e indefesa para se divertir, ampliar poder, apagar as próprias mágoas e preencher o vazio d’alma. A banalidade do mal surge tanto em um horrível jingle de campanha à reeleição quanto nas balas cuspidas por metralhadoras. As duas coisas representam a covardia em todas as suas letras.

Para exterminar Bacurau torna-se necessário tirá-la do mapa e submetê-la à escuridão. A ideia é cometer o crime perfeito, sem rastros nem suspeitos. A estratégia, à primeira vista esperta e ousada, não leva a sério a ambiguidade da placa a 17 km da cidadela: “Se for, vá na paz”. Siga em paz porque em Bacurau são todos – homens, mulheres, idosos e crianças – ingênuos e indefesos, pacifistas por convicção? Ou vá na paz, senão o chumbo será grosso? Bacurau reage com violência à invasão porque é de sua “natureza” ser agressiva e impiedosa ou o faz ciente de que não poderá contar com mais ninguém, além de seu anti-herói Lunga (meio Diadorim, meio Che), os psicotrópicos e a herança cangaceira? Uma velha carcaça de viatura policial à entrada de Bacurau dá pistas para instigantes respostas a essas questões, bem como a necessidade diária da visita de um caminhão-pipa para abastecimento geral.

Bacurau”, o filme, fala de gente que nasce gente e é obrigada e se reinventar diante das invasões previstas e imprevistas. Não se trata de apologia à violência nem de caricaturização das “ameaças yankees”. O que se vê é a construção de uma alegoria da resistência, na qual pesam o gosto pela vida, o espírito comunitário e o sentimento de pertencimento a um lugar que se ama de verdade. Nada mais oportuno para pensar o Brasil atual, cujos ataques sucessivos por parte dos poderosos e seus aliados contra toda forma de inteligência e sensibilidade ainda irão transformar o mapa do País numa gigantesca Bacurau, do Oiapoque ao Chuí.

Bacurau, a cidade, é um Brasil em miniatura, como a “São Bernardo” de Graciliano Ramos, um comunista alagoano que bem poderia ter nascido e crescido na fictícia e hiper-realista Bacurau. Depois de assistir a essa pepita da sétima arte brasileira, é quase impossível não parodiar Bandeira: “Vou-me embora pra Bacurau, pois lá sou amigo do povo”.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]