O saudoso diplomata e sociólogo José Guilherme Merquior (1941-1991) considerava Nietzsche, o grande filósofo alemão, um sujeito “hors concours” no que diz respeito à escrita e à elegância textual. Merquior destacava que, concordando ou não com o autor de “Ecce Homo”, era impossível negar-lhe beleza narrativa, força argumentativa e paixão pelos temas sobre os quais versava.

Nietzsche, numa de suas imersões na criação de conceitos e categorias, estabelece uma fecunda discussão sobre a figura do “último homem”, esse ser premido pela ambiguidade das sociedades modernas: sobreviver materialmente e, ao mesmo tempo, elevar-se espiritualmente. Como, pergunta-se o filósofo, enriquecer-se pelo trabalho, essa fadiga convertida em nobreza numa época em que indivíduos se perdem em rebanhos e sua humanidade se encontra dilacerada, perdida na mediocridade das multidões?

Sabe-se que Nietzsche era uma espécie de rebelde aristocrata. Negava a modernidade em favor de um tempo passado que permanecia ainda mais promissor do que o horrendo presente. O “último homem”, assim, só poderia ser vencido pelo “super-homem”, um indivíduo descolado do bando, das aspirações coletivistas e irracionais, capaz de escapar à indistinção é à vulnerabilidade de uma vida que perde fôlego na passagem do tempo, tornando tudo um “eterno retorno”. Para superar o drama do irremediável registro do tempo, o “super-homem” seria o protagonista do “eterno instante”, de uma vida plena, pensada, imune a ressentimentos e autopiedade. Nietzsche, contudo, tinha ciência do caráter inverossímil de seu desejo de potência.

Na última fase de sua vida, Merquior, que morreu antes de completar 50 anos, confessou ter se tornado “um quarentão de prosa neoiluminista”. Ainda que atinasse positivamente com muitas coisas interessantes nas reflexões nietzschianas, fazia questão de marcar a dimensão iliberal do pensador alemão. O indivíduo exaltado pelo profeta Zaratustra, imortalizado na narrativa irretocável de Nietzsche, não era o da autonomia moderna, dos direitos humanos, das liberdades civis e políticas conquistadas no palco democrático. Era um ser quase abstrato, vivente numa era de ouro que nunca existiu, num mundo antigo que caducou antes de o humano surgir na história. Merquior, um tipo de liberal hoje em extinção, diria que o super-homem, se vencesse o último homem, produziria uma personagem ficcional, sem paralelo na vida real. E, afinal, em que mundo caminham seres sem história?

Inspirado no filósofo espanhol José Ortega y Gasset – no conceito de geração desenvolvido em “O tema de nosso tempo”, publicado em 1923 –, Merquior eleva à enésima potência uma espécie de “sensibilidade orteguiana”, que consiste no esforço de compreensão do modo como cada geração apreende o legado daqueles que a antecederam e, a um só tempo, elabora seu próprio conjunto de normas e tradições, aquilo que almeja deixar para os que virão. Essa “sensibilidade” oferece sentido à vida no tempo, o único horizonte comum da existência humana.