Dar amplitude ao trivial é desejo que todo olhar interessado na vida tem. Das coisas simples nascem grandes reflexões e respostas a desafios que ultrapassam fronteiras. Lembro que faziam isso Moacyr Scliar e Paulo Mendes Campos, além do sempre badalado Rubem Braga. E ainda o fazem gente boa como Antonio Prata, Luis Fernando Veríssimo e Ignácio de Loyola Brandão. É vasta a galeria de cronistas em nossa língua, e eleger um preferido é jogada inglória.


Por diversas razões – todas associadas à firme decisão de reinventar a própria existência –, observar com calma os movimentos do mundo tornou-se permanente para mim. Semanas atrás, na antessala de uma clínica médica, flagrei-me entretido com as caminhadas desajeitadas de três formigas. Elas iam de um lado para o outro, sem rumo, buscando sabe-se lá o quê. Quando ficavam próximas, afastavam-se, como se o encontro estivesse mesmo sendo evitado. Juro que fiquei preso a essas imagens por mais de uma hora, torcendo pela realização dos sonhos delas, ainda que eu não pudesse fazer ideia de quais fossem.



Nos últimos anos, prefiro assistir a filmes que carregam histórias de vida ligadas ao amor, ao trabalho, aos estudos, às infinitas possibilidades do espírito humano. Fujo às metanarrativas, às explicações gerais sobre tudo e todos. Cansei de gente que quer ler o universo inteiro de uma só vez, encaixotando a dramaticidade de nossas experiências tão incomuns em pequenos recipientes. Desconfio abertamente de pessoas cujas palavras pretendem dar conta da imensidão do Céu e da Terra. Paradoxalmente, procuro algo que seja bom para o gênero humano, que possa estender-se pelo planeta como valor compartilhado. Essa minha aparente contradição já me valeu a alcunha de “marxista pós-moderno” – ou “marxista acústico”, desplugado, como se dirigia a mim uma antiga, querida e saudosa colega de docência.



Eu gosto dessas definições. Elas alargam horizontes. Sei que são problemáticas, que na visão de muitos soam absolutamente improváveis, mas as aprecio mesmo assim. Conjugar termos discrepantes é um exercício que exige cuidado, alguma criatividade, boas doses de audácia. Afinal de contas, as cartilhas servem para ser negadas; os dogmas, questionados; as leis gerais, sumariamente afrontadas. Dessas práticas nasceu o indivíduo moderno, portador de voz e vez, de um lugar crescente na história. É desanimador imaginar que estamos por aqui apenas para reproduzir o esperado, reiterar o já dito, profanar aquilo que já está dessacralizado. A vida é muito mais do que isso.



Durante minhas caminhadas, detenho-me nos gestos aparentemente mais banais, em busca do humano que se esconde em tudo que ocorre. Minha intenção é valorizar tanto as coisas miúdas que interessam ao cronista quanto as emergências transformadoras que animam o sociólogo. Sou este dois-em-um: um pós-moderno que crê nas microrrevoluções pessoais e um impenitente marxista que sonha com um mundo inteiro diferente, afeito às diversidades capazes de produzir unidade. Raul Seixas diria que sou uma metamorfose ambulante. Toca Raul!

Monumento a Karl Marx em Chemnitz - na Alemanha
Monumento a Karl Marx em Chemnitz - na Alemanha | Foto: Istock

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