Somos uma sociedade violenta. Não obstante os versos inquietos a respeito de nossa bondade e hospitalidade, o fato é que fomos forjados no ferro quente da escravidão. Contra indígenas lançamos ódio, indiferença e cobiça. Aos escravizados que fomos desterrar em África, com variados temperos, dedicamos horror e absoluto menosprezo, tratando-os como animais sem valor além do monetário. Isso nos explica – e também nos eterniza, desgraçadamente.

Os repetidos casos de repressão policial contra as populações mais vulneráveis não são atos falhos nem apetites individuais desmedidos. Eles constituem parte de nossa herança colonial, na qual os “de baixo”, para ficarem onde precisam estar e de onde não podem sair, são sufocados a pauladas, práticas de abandono ou chuvas de gás. Os “de cima” não veem problema nisso tudo; o máximo que conseguem expressar diante de um caso de barbárie é um insincero pêsame.

No Brasil, deveríamos criar um dispositivo constitucional que alterasse o nome do país toda vez que uma pulsão de morte se realizasse pelas ruas das cidades em todo o território. Hoje, assim como ontem, teríamos nomes singelos e bem populares. Seríamos “Amarildo”, “Genivaldo”, “João”, “Carlos” e “Chico”. Seríamos também cada uma das vítimas de feminicídio. Sobraria muita oportunidade para nomes infantis, oriundos da desnutrição, do confinamento em ambientes insalubres, condenados à falta de escola e atenção. Por pouco ou nenhum tempo seríamos “Brasil” – nosso nome oficial cairia em olvido.

Entre nomes do povo se substituindo a cada instante, contaríamos nossos mortos. Ficaria claro que sua pele é negra, seu ânimo é indígena, sua visão de mundo é feminina. O endereço das agressões não muda: é periférico, onde perambula gente em busca de dignidade, distribuindo abraços e sorrisos esperançosos, apesar da neblina diária. Sua terras são objeto de avidez, seja por questões imobiliárias no meio urbano, seja por mesquinharia latifundiária nas matas e florestas. É preciso extrair-lhes tudo: terra, nome e esperança. Aliás, essas três palavras seriam mais honestas no lugar do “ordem e progresso” da bandeira nacional.

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. | Foto: iStock

Uma sociabilidade nova é urgente. Ainda que o passado pese demais sobre nossos ombros, é necessário que utopias não nos sejam proibidas. O antirracismo requer lugar nas escolas, nos espaços públicos, nos meios de comunicação social. A internet (esse espaço de tanto dissabor e conflito) pode ser utilizado para educar, trocar experiências e estimular o convívio em meio à diversidade. Além disso tudo, é vital que aprendamos a reconfigurar nossos gestos afetivos, deslocando-os do plano dos pequenos grupos para o âmbito de uma humanidade carente e sedenta por boas novas. Punir responsáveis por atos violentos e covardes seria, é claro, um excelente exemplo para um país que deseja mudar e ser melhor. Uma nação que ora se chama “indignação” agradece desde já.

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A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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