Nasci na primeira metade da década de 1970. Cresci, então, com um geração de adultos cuja palavra-chave era utopia. Adolescente nos anos 1980, assisti pela TV à queda do Muro de Berlim e acompanhei em tempo real as notícias sobre o fim da União Soviética. Por aqui, no mesmo período, fui contemporâneo da Lei da Anistia, da redemocratização do país, das primeiras eleições em que a esquerda, renovada, apontava no horizonte.

Em meio a sonhos destruídos e utopias resistentes, posso-me considerar membro de uma geração que se viu obrigada a duras autocríticas e, principalmente, à urgência de reinterpretar a história e redesenhar os traços fundamentais de sua visão de mundo. Nada disso nos virou do avesso, nos fez diferentes, em essência, daquilo que sempre havíamos sido: incorrigíveis sonhadores.

Os dias atuais preferem distopia a utopia. Parece até que se tornou proibido sonhar. Há no ar um clima de derrota permanente, de cinismo reinante. Alguns dizem que a vida está ótima, apesar de absolutamente tudo revelar o contrário. O individualismo, o consumismo, a alienação converteram lutadores em “empreendedores de si”, sujeitos contaminados pelo vírus do neoliberalismo, que ataca a alma e demonstra ser imune à esperança. Um pesado desalento desaba sobre os ombros daqueles que insistem na utopia.

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. | Foto: iStock

Uma expressão veste como luva as impiedosas mãos do mundo hoje: terra arrasada. Refere-se a períodos de guerra, quando, em retirada, tropas vencidas destroem tudo que possa servir aos inimigos que avançam. Noite dessas, depois de uma dia inteiro tomado por palavras estúpidas do presidente da República, tive um pesadelo. Andava por ruas de uma verdadeira terra arrasada. Só havia ruínas. Tanques do exército transitavam pelo que sobrara da cidade e, do interior das máquinas mortíferas, uma voz eletrônica ditava o sarcástico toque de recolher: “Todos para seus buracos, talquei?”

Temo que haja indícios da realidade em meu pesadelo. Num país em que livros assustam, a ciência é ridicularizada, a natureza é incendiada, a covardia inibe a coragem, filhos mimados dizem o que um pai ignorante deve ou não fazer e negacionistas apostam no “quanto pior, melhor”, todo sonho bom passa a ser, no mínimo, uma madrugada maldormida.

A sensação de adentrar uma terra arrasada só piora num contexto de pandemia em que ironias tomam o lugar de ações responsáveis e o “cada um por si” supera a solidariedade que está na base de toda ideia de humanidade. Nos bastidores, amantes confessos de distopias planejam um futuro ainda menos luminoso, enquanto sobreviventes da utopia resistem, apenas resistem.

Decidi acrescentar ao romance policial que estou escrevendo uma personagem com recorrentes pesadelos distópicos. Guerras, devastações, genocídios, tiranias, nada escapa às suas noites intranquilas. Caberá ao detetive que criei desvendar as razões sociais de tanto catastrofismo, mesmo sob a forma onírica.

Na terra arrasada em que se movem as utopias, resta crer que os inimigos – as distopias – nada encontrarão para se alimentar. E, assim, morrerão antes de alçarem à condição de pesadelo coletivo.