“On The Sunny Side Of The Street”, um blues que a incomparável voz de Louis Armstrong deu ao mundo em 1934, retrata uma das dimensões da vida dos negros do sul dos Estados Unidos que eram obrigados a caminhar pelo lado ensolarado da rua. A sombra, símbolo de proteção e tranquilidade, era exclusividade dos brancos. Ao longo dos anos, a canção ganhou intérpretes da qualidade de Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Rod Stewart, além de versões que foram do blues e do jazz ao funk, o rock e o rap. Mais do que uma canção, tornou-se um hino de força e esperança.

Imagem ilustrativa da imagem Sunny Side of the Street

Na letra, Armstrong apresenta um homem que, mesmo não tendo um centavo no bolso, acredita que será mais rico do que Rockefeller. Não por se tornar um industrial monopolista ou ingressar nas fileiras de uma família de milionários, mas por estar entre as melhores pessoas. A composição, eternizada na cultura musical estadunidense, relativiza a exclusividade materialista da ideia de riqueza, transpondo-a para o universo das amizades, dos afetos que garantem a imortalidade dos sonhos e das lutas.

Nesta nossa época de tantos infortúnios na vida pública, é fundamental que procuremos o lado mais ensolarado das ruas. Assim o fizeram (e seguem fazendo) os sul-africanos, na luta contra o apartheid; os latino-americanos, na disposição em denunciar e enfrentar os sofrimentos causados pelo neoliberalismo; as mulheres, na corajosa batalha contra a misoginia e o machismo estrutural; os povos de todo o planeta, na necessária caminhada contra as potências que colonizam corpos e mentes, municiadas de dinheiro, prestígio e amplo apoio midiático.

Do dever compulsório de andar sob o sol escaldante, sem direito a nada, os negros do Delta do Mississippi subtraíram sua musicalidade, sua capacidade de se organizar politicamente e, principalmente, sua iluminada face de resistência, ilustrada pela união, pela criatividade e, principalmente, pelo cruzamento de vidas comuns.

Viver em comum talvez seja o maior de todos os desafios humanos neste ainda início de século 21. A ideologia do indivíduo autossuficiente, descrente em projetos universais e escaldado na mentira que multiplica falsas aparências de bondade e felicidade, apenas tornou os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Números frios, nessas horas, são apresentados para defender o progresso do mundo liberal – só que números (em geral frios e vazios de análise crítica) não passam disto: números.

Muitas perspectivas que se realizaram em nome do todo também falharam, deixando um gosto amargo na boca daqueles que se inspiram em valores humanistas. O reconhecimento do outro passa pela constatação de que somos artífices da mesma realidade. Ao negar aquele que é diferente, ninguém mais vê nada nem ninguém: a vida se converte num enorme espelho de indigência. Para que valha a pena, a vida precisa ser de encontros, sutilezas, verdades e amores. E isso, Armstrong já poetizou, só se vê e se sente no lado ensolarado da rua.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]