Depois de uma forte tempestade, Rindu, Mário e Martina, três jovens moradores da capital paulista, ficam presos numa caverna no Vale do Ribeira, onde foram testar conhecimentos adquiridos num curso de espeleologia. Após dias, quando o volume das águas baixa e eles conseguem escapar do confinamento involuntário, percebem que algo estranho aconteceu.

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No caminho de volta a São Paulo, o trio observa que todos os seres humanos estão “duros” e não mais respiram. A situação seria passageira? O “fenômeno” (como eles intitularam o possível apocalipse) seria local ou global? Como eles fariam para deter o caos e encontrar um novo sentido para a existência? Respostas a essas questões e um amontoado de dúvidas e novos eventos compõem a trama de “Blecaute”, romance que Marcelo Rubens Paiva lançou em 1986. O livro marcou gerações de leitores e ajudou a formar escritores entre aqueles nascidos nas décadas de 1960 e 1970.

O contexto da obra é digno de nota: a Nova República “prometendo” liberdade e democracia (o populismo que nunca se desmancha no ar); a ditadura civil-militar sobrevivendo sob escombros e nas consequências da desigualdade social gritante; uma juventude entre a velha luta política e o novíssimo desbunde cultural; a TV e os meios de comunicação se tornando cada vez mais “espetaculares”; a ficção científica jurando que fará de suas distopias um horizonte, seja de provocações que inspirem utopias renovadas, seja de acovardamentos que irão, lentamente, ressuscitar mentalidades reacionárias, instigar a criminalização de movimentos sociais, gerar indiferenças políticas e promover atitudes dissimuladas de violência, preconceito e segregação. Esse duplo horizonte ainda hoje divide o Brasil – e o mundo também!

Vale destacar que “Blecaute” aparece no momento em que o Muro de Berlim está para cair e a União Soviética já não responde a anseios revolucionários, o que a levará à ruína e trará precipitadas declarações de vitória da democracia liberal e do “fim da história”. Aliás, é sobre o fim de tudo que versa o livro de Marcelo Rubens Paiva.

Narrado por Rindu, em tempos que se alternam entre o passado e o presente, “Blecaute” é a história dos três últimos habitantes do planeta, lutando para entender a angustiante novidade e, quando possível, projetar os dias depois do amanhã. Em meio a tudo, muito tédio. Como num drama vitoriano, ciúmes, inveja e ressentimento nutrem diálogos e segredos, palavras ditas e pensamentos inconfessáveis. Desejo e nojo, esperança e desilusão, amizade e solidão, coragem e apatia, tudo se faz dialeticamente, convidando o leitor a se imaginar num mundo em que não há mais nada nem ninguém, só três almas perdidas, animais selvagens invadindo as cidades, um pôr-do-sol após o outro e a ameaça iminente de um blecaute.

Marcelo Rubens Paiva escreve sob o último luar das grandes narrativas e diante da implosão de um processo civilizador que acreditou na razão universal, na síntese entre subjetividade e objetividade para erguer sociedades viáveis, habitadas por humanos emancipados. Os anos 1980 prenunciaram, sim, um “fim da história”, que cada um contou à sua maneira. De todo modo, essa diversidade de narrativas “finais” acompanha hoje a insurgência de rebeldes por toda a América Latina, de uma multidão que ficou (muito) mais pobre e (bem) menos feliz desde a “vitória do fim”.

Esfolados pelo neoliberalismo e sua visão gerencial da realidade (a onda “coach” é expressão desse horror), os latino-americanos vêm demonstrando que querem mais da vida e não assistirão calados ao blecaute das utopias. Uma nova edição de “Blecaute”, o livro, bem que poderia trazer como epígrafe uma das mais significativas máximas de José “Pepe” Mujica, ex-presidente uruguaio: “Antes de sermos indivíduos, somos seres humanos, e antes de sermos seres humanos, somos latino-americanos”.

Bem lida e entendida, essa sentença diz muito sobre nós e por que jamais ficamos “duros” após tantas tempestades.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]