Em sua décima quinta tese sobre o conceito de História, o ensaísta alemão Walter Benjamin faz referência aos revolucionários que, interessados em interromper o “continuum” do tempo, atiravam nos relógios localizados no alto das torres parisienses – e eles o faziam de forma quase sincronizada, em diferentes pontos da cidade, sem que nada tivessem combinado.

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Em velhas utopias – como na Abadia de Thelème, de François Rabelais –, o relógio era um item proibido. O controle que o tempo exerce sobre as consciências humanas era visto como extremamente opressor, inibidor de criatividade e tendências à felicidade comum. Derrotar o curso linear dos processos históricos é tarefa revolucionária por excelência.

A indisposição contra a passagem autoritária das horas é também um exercício de enfrentamento da matematização da vida. Transformados em números, cifras ou códigos de barra, os sujeitos revelam enorme dificuldade em tomar as rédeas de suas trajetórias. O relógio, que antes sobrevoava a cidade lá nas alturas de igrejas e edifícios famosos, já faz tempo que é carregado no pulso ou no bolso (sem falar, é claro, no tempo calculado por celulares e pequenos bibelôs eletrônicos que estão sempre à mão).

Já não se fazem revolucionários como antigamente, sabemos. O tempo engole o cotidiano, impede a novidade e reproduz tudo a toda hora, em toda parte. É como se um relógio onipresente existisse como um “big brother”, encaminhando tarefas, dividindo injustamente o produto do trabalho coletivo, delimitando os espaços que podem ou não ser frequentados ou habitados. Ao lado da matematização da vida, há uma profunda biologização da sociedade: tudo deve funcionar como se fosse um organismo animal, em que cada instituição se assemelha a um órgão, tem uma função e não pode parar sob nenhuma hipótese.

De acordo com Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, passamos, nas sociedades neoliberais contemporâneas, a explorar a nós mesmos. Não é mais necessária a figura externa do patrão. Em nome da hipercompetitividade e da urgência da sobrevivência, exigimos de nós mesmos muito mais do que o razoável, impondo-nos uma dura realidade de trabalho, autossuperação, positivação diante das agruras do tempo. É proibido chorar, é feio desistir, é lastimável que não façamos mais esforços. Tudo deve ser visto como um episódio novo e dinâmico de nossa autorrealização. A felicidade, afinal de contas, é para quem corre atrás, não cansa, empreende e não faz corpo mole jamais. “Vá, veja e vença”, bradam os coachs.

Paralelamente a esse fustigante “sofrimento do homem burguês”, como genialmente percebeu mestre Leandro Konder, desfaz-se o espírito revolucionário que desejava incendiar o tempo histórico, inaugurar novos calendários, fazer surgir um tipo diferente de sociedade, mais bonita e mais humana. Conformar-se é a atualização de status padronizada dos indivíduos hoje.

Diante do espelho (e atentos ao relógio), antigos revolucionários veem-se impelidos a rever dolorosamente suas travessias. O resultado é quase sempre melancólico. O tempo não poupa ninguém.

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A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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