Vista do alto, a desigualdade é bem diferente. Em países com longa tradição autoritária, como o Brasil, os elementos que compõem o profundo abismo social, ao olhar dos ricos, são meros acidentes de percurso, contra os quais há pouco o que fazer. Resta, quando muito, a caridade.

Imagem ilustrativa da imagem Sobre a desigualdade

Um bate-papo em vídeo entre as elites dirigentes da política brasileira veio à lume na semana passada. Tratava-se de uma reunião formal, embora o clima fosse de jogo de várzea. O desfile de absurdos parecia não ter fim. Num misto estranho de horror e comédia, dezenas de palavrões foram proferidos. Pancadas sobre a mesa, gritos de raiva, palavras de puro ódio. Quem viu – e não era um desses fanáticos que vestem a camisa da CBF e saem às tontas atrás do “mito” – ficou perplexo. A questão é incômoda: como chegamos a isso?!

Na tal reunião formal (imaginem o que não dizem nos cafezinhos entre expedientes), cogitou-se, por exemplo, aproveitar o fato de a pandemia do coronavírus monopolizar a cobertura de imprensa para “passar a boiada”, liberando a devastação ambiental e o genocídio de povos indígenas e quilombolas. O deseducado que responde pela educação, por sua vez, vociferou que odeia a diversidade, já que pensa haver um só tipo humano brasileiro. É de provocar arrepios: a mais importante pasta ministerial da nação está sob “comando” de um sujeito que não entende nada da complexa formação social do País. Aliás, não entende nada de absolutamente tudo.

Outras vozes correram por semelhante escuridão de ideias e propósitos. Desejos variados de ver liquidada a interdependência dos poderes, destruído o bom-senso no debate público, privatizado o patrimônio comum e sepultados os direitos humanos encenaram um espetáculo simbólico de ódio à democracia. A desigualdade, portanto, não se expressa só na aviltante miséria social; ela se nutre, bem antes e para muito depois, de uma imagem do Brasil que se revela, historicamente, indiferente à dor dos outros. Em nenhum momento da “pelada” – quer dizer, reunião ministerial – foi dita uma só palavra sobre as mortes em decorrência da Covid-19, muito menos a respeito de um plano efetivo de contingência para lidar com uma tragédia que deixará o País como o pior exemplo de solidariedade e compromisso ético do planeta.

Não somos a Nova Zelândia. O “mito” não chega à planta dos pés da primeira-ministra Jacinda Ardern, que, naquela distante ilha do Pacífico Sul, dá exemplos diários de como praticar a empatia, exercer o cargo e, principalmente, ser inteligente. A essa altura, nem cobro das autoridades brasileiras inteligência. Seria abusivo. Espero obter delas, ao menos, o direito de não sentir vergonha alheia.

No hiato que nos separa das verdadeiras democracias, reside a desigualdade sempre vista do alto por aqueles que olham para os “de baixo” com menosprezo e rancor. Quando falam em “passar a boiada”, “prender todo o mundo”, “armar a população”, a vítima é o povo simples, não obstante dele explorem a fé e manipulem as ações. É a famosa hipocrisia burguesa.

A desigualdade, que corrói a vida de milhões de brasileiros há séculos, nasce da negação de admitir cada um, na sua singularidade, como igual a todos os outros. Numa república de parentes e compadres, a desigualdade é um projeto político e uma execrável visão de mundo.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]