Hannah Arendt é detentora de potentes interpretações do século 20. Tendo vivido boa parte dos horrores de seu tempo, sentiu na carne a violência das sociedades modernas. Judia, teve de praticar várias “fugas” no curso da vida. Deixou a Alemanha nazista, refugiou-se na França e, por fim, chegou a Nova Iorque. Toda essa travessia levou quase 20 anos, tempo em que Hannah Arendt não teve sobre si a proteção de nenhum Estado, ou seja, um mínimo corpo de direitos que lhe pudesse garantir a dignidade humana.

O pensamento de Hannah Arendt vive um bom momento, não só porque muito de sua produção vem sendo reeditada, mas também porque o instante ainda é propício ao seu olhar reflexivo e crítico. Como se a realidade estivesse suspensa desde 1975, ano de sua morte, Hannah Arendt nos diz muito sobre a “banalidade do mal” (conceito controverso que cunhou para explicar a indulgência de nossas piores ações); a luta pelo direito a ter direitos; o autoritarismo e o flerte totalitário de muitos governos hoje; os refugiados que grassam por todo o planeta; a questão do racismo e das discriminações, suas nuances sutis e ao mesmo tempo agressivas; as liberdades públicas e a espontaneidade da organização política daqueles que desejam se ver livres da opressão.

Hannah Arendt
Hannah Arendt | Foto: Reprodução

Trata-se de uma vasta obra inserida em seu tempo, que pode servir de iluminação àqueles que desejam encarar o século 21 e seus desafios. Em seu livro de 1958, “A Condição Humana”, Arendt reflete sobre as caraterísticas que tornam comuns as experiências de seres humanos em concerto – a análise do trabalho, da obra e da ação busca compreender o que nos torna essencialmente o que somos e podemos vir a ser. É leitura prazerosa e sempre necessária.

Mas foi em 1951, quando publicou “As Origens do Totalitarismo”, que Hannah Arendt deu norte à sua pujante vida de intelectual comprometida com a felicidade pública. Nessa obra que ora completa 80 anos, Arendt detectou os espessos traços totalitários do nazismo e do stalinismo, cujas feições mórbidas ainda se fazem presentes mundo afora. De outro modo, em sua leitura da mentira na política, a autora de “Sobre a revolução” aponta a verdade factual como algo a ser perseguido por quem não deseja ver meras opiniões se tornarem a versão final de um dado histórico. Com isso, traz à luz os desafios da política num mundo em que as mais deslavadas mentiras se transformam em verdades, no intuito de obstruir, nos espaços públicos, os agentes da ação. Resta, então, caminho de sobra para demagogos que emprestam aparência de morte à necessária dimensão política de nossa condição humana. Hannah Arendt pressupõe que a liberdade, desde que não seja alarido em torno de mesquinharias, requer uma comunidade de pertencimento, um espaço em que os humanos possam se sentir à vontade no mundo.

Nenhum outro autor ou autora desempenhou sobre mim tanta influência quanto Hannah Arendt. Devo-lhe a base de minha formação humana e acadêmica – e as principais escolhas que fiz como leitor e tradutor do mundo. De mim, só gratidão.

...

A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.