Se existe uma coisa que pode ser chamada de “brincadeira sem graça” é a roleta-russa. Suicidas e homicidas, em momentos de ainda maior desatino, adoram a prática de deixar uma única bala no tambor do revólver, apontando-o para a própria cabeça ou para a testa de algum incauto em hora e lugar errados. Sobreviver passa a ser uma questão de sorte.

Imagem ilustrativa da imagem Roleta-russa
| Foto: iStock
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A “brincadeira” pode ser utilizada como metáfora para entender momentos delicados da vida. É fácil comparar a aglomeração de pessoas nas ruas ou em filas para pagar seja lá o que for com uma roda de participantes numa roleta-russa, quando uma pandemia singular na história se revela tão assustadora quanto enigmática. Nessas horas, o sentimento é que autoridades e grupos de pressão (leia-se: endinheirados) decidiram brincar de roleta-russa com uma metralhadora. Uma diferença: o cartucho da arma de fogo está cheio.

Como em todo jogo de azar, na roleta-russa há vencedores. Via de regra, aqueles que saem com o grande prêmio (o sádico e lucrativo prazer diante da morte do outro) conhecem bem as armas, manipulam-nas com extrema habilidade, sabem-lhes peso, ruídos e macetes. Jogam, portanto, com forte inclinação para a trapaça. Enquanto os propositores da “brincadeira” creem que não morrerão, os demais participantes, desesperados, aceitam caminhar numa fina corda sobre o abismo. Não se veem despencando para o inferno: acreditam, quando topam participar da roleta-russa, que já estão lá. Apostam, então, numa ilusória fuga.

Relativizar a fronteira que separa vida e morte é também diversão dileta de um tipo humano peculiar: o negacionista. Como se liderasse um gigantesco círculo de roleta-russa, o negacionista ridiculariza o bom-senso, subverte o óbvio, afronta os fatos mais evidentes. Na história, nega a escravidão, o holocausto e as ditaduras. Na economia, distorce números e ama receber conselhos de quem só enxerga o próprio bolso. Na política, junta-se ao que há de pior, liderando o absurdo em terras de extrema desigualdade e acentuada miséria. Na ciência, desconhece Galileu, Darwin, Newton e Einstein, consultando-se exclusivamente com viciados em teorias conspiratórias. Na cultura, perde-se como bufão de extrema ignorância: nunca leu um livro que prestasse, nunca viu um filme com mais de 30 segundos, nunca ouviu uma canção que não fosse para marchar ou atirar. Na ética... bem, deixe-se isso para lá.

O negacionista anda em bando, embora odeie toda forma de coletividade. Sai às ruas e faz carreata em frente a hospitais, procurando em sombras e ventos “os comunistas que desejam dominar o mundo”. Bisonho e tacanho, grava vídeos para a internet, filiando-se a pequenas quadrilhas, para negar a dimensão esférica da Terra, a preocupante disseminação da Covid-19 e a própria insanidade edulcorada pela camisa amarela da CBF. Dissimulado e perigoso, deixa o último tiro, aquele em que a bala certamente fará grande estrago, para a inteligência humana.

É razoável que o presente esteja sob comando de uma trupe de negacionistas e praticantes de roleta-russa? Aqueles que se calam diante dessa temeridade precisam admitir que suas cabeças serão, numa hora ou outra, o próximo alvo.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]