Li numa “National Geographic” que leões repousam até 22 horas por dia. Eles têm a sorte de ocuparem o topo da cadeia alimentar, não servindo de presa a ninguém. Do contrário, estariam extintos faz bastante tempo. Na mesma edição da revista, noutra reportagem, um médico afirmava que o corpo humano, se lhe fosse permitido, passaria a totalidade do tempo em descanso: sua tendência é a de acumular energia, não de consumi-la.

O fato é que leões podem morrer de fome. Se não conseguirem caçar durante o escasso tempo em que se dedicam a algo além de sombra e água fresca, perecerão. Falta-lhes, para enfrentar e vencer a “preguiça”, a capacidade de racionalizar suas reais condições de sobrevivência na natureza selvagem. Aquilo de que carecem os maiores felinos, sobra, supostamente, aos seres humanos: consciência de si.

Não é preciso divagar para imaginar onde iria parar um sujeito que passasse o dia inteiro deitado no sofá, vendo TV, consumindo guloseimas. Para além da sobrevivência física – que seria curta diante de uma agonizante morte certa –, tal indivíduo ganharia peso, acumularia doenças e atrofiaria a mente. Seu maior prejuízo só seria perceptível a longo prazo – em vez de se tornar presa fácil de algum predador selvagem, tornar-se-ia, rapidamente, uma vítima de si mesmo. Ao abrir mão de exercitar a consciência, converter-se-ia num animal vulnerável.

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. | Foto: iStock

Quem é o predador “natural” do homem? Somos uma espécie única, uma vez que nos tornamos algozes de nós mesmos. Numa realidade hipercompetitiva, em que as regras de funcionamento do mercado impõem às populações o ritmo da sobrevivência nas “selvas de pedra”, alertando a cada um que se salve como puder, a caçada é pelo pão diário, pelo valor do aluguel, pela vestimenta do trabalho, pela passagem do transporte coletivo, pelo direito mínimo a uma cerveja na sexta-feira à noite.

Para repousar, numa “jaula de ferro” – usando a expressão do sociólogo Max Weber para designar as modernas sociedades capitalistas –, é preciso estar disposto a morrer. Diferentemente dos leões, que são reis inconscientes, temos a oportunidade de compreender esse mecanismo de dominação e subjugação, que não é natural, é histórico. Sendo súditos hoje, não precisamos continuar na mesma condição amanhã. Para tanto, a mente deve se abrir para o novo, para a ruptura, para novas possibilidades de viver.

A hiperindividualização do mundo contemporâneo dificulta bastante as coisas. O vir-a-ser humano é uma dinâmica coletiva, de troca de impressões e experiências. O sucesso individual depende de uma coletividade que oferte várias chances e garanta os instrumentos de realização pessoal. Isolado, o ser humano é uma presa da inanição, da baixa autoestima, da descrença em sua capacidade de, conscientemente, revelar novas jogadas, apostar noutras saídas.

A consciência, que é tanto individual quanto coletiva, é a chave da sobrevivência em condições de desumanização crescente. Sem ela – ainda que fôssemos reis –, as chances de o tempo histórico nos devorar só aumentam. O que temos a perder, além das algemas?