Uma das maiores infelicidades pelas quais um indivíduo pode passar é, durante uma discussão, perguntar ao interlocutor se ele “quer que desenhe”. A suposta esperteza de quem pergunta algo assim logo se esvai diante das evidências.

Nas cavernas da história estão registros preciosos de como nossos ancestrais se comunicavam e registravam seus feitos “desenhando”. Mais ainda: na infância, a percepção dos traços, cores e formas é fundamental para o desenvolvimento de inúmeras habilidades que serão postas à prova no decorrer de toda a vida.

“Desenhar” é uma arte – e também é uma atividade das mais complexas. O preconceito contra os “desenhos” é antigo e não dá sinais de acabar tão cedo. É comum que alguém, ao indicar um livro, desaconselhe os que são muito ilustrados. Do mesmo modo, os quadrinhos são costumeiramente vistos como uma modalidade menor da expressão literária, indicados somente como entretenimento.

Penso, então, no método Paulo Freire de educação de adultos. As palavras são apreendidas a partir do conhecimento de imagens que compõem o cotidiano daqueles que estão em processo de alfabetização. A associação entre letras e “desenhos” abre caminhos alvissareiros para quem nunca pôde compreender o significado das palavras, projetando, na mente, aquilo que elas sugerem.

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. | Foto: iStock

No casamento entre literatura e cinema, repulsões também se revelam. Há quem diga que, entre livro e filme, o primeiro é preferível sempre. Ocorre que não se trata de espelhamento ou reflexo. O filme tem autonomia, conta e reconta, a seu modo, histórias registradas de outras maneiras. O cinema se inspira na literatura e cria sua própria arte: pode, assim, ser visto independentemente do conhecimento da obra a que se refere, direta ou indiretamente. Quando meus alunos me perguntam: “Filme ou livro, professor?”, respondo sem titubear: “Os dois!”

Essas reflexões começaram quando soube que o primeiro livro que li de verdade completou 40 anos. Trata-se de “O menino maluquinho”, do escritor e cartunista Ziraldo. Antes dele, de modo contínuo, eu me revezava entre gibis e suplementos infantis dos jornais. Amava a Turma da Mônica, os almanaques da Disney e as aventuras do Recruta Zero. Mais tarde, mesmo depois de conhecer os livros sem “desenho”, passei a consumir as histórias da Marvel e da DC, responsáveis por Demolidor e Batman, respectivamente. Hoje em dia vivo em busca de quadrinhos que narrem grandes histórias – e eles existem aos montes.

“O menino maluquinho” elabora a união perfeita entre um texto ágil e imagens provocadoras. Cada página desafia o leitor a encontrar nos “desenhos” as palavras – e, de igual maneira, nas palavras os “desenhos”. No final do livro, uma saudação ao futuro: o garoto de panela na cabeça, arteiro e incansável, cresceu e se tornou um “cara legal”.

Se, numa conversa, alguém que julga saber das coisas perguntar se você quer que ele “desenhe” o que está tentando dizer, diga-lhe sim: da mesma forma como ele não sabe se expressar muito bem pelas palavras, é provável que seja ainda pior com os “desenhos”.