Alberto, aos 90 anos, nunca havia passado tanto tempo dentro de casa. A pandemia do novo coronavírus o obrigou a reduzir seus dias a tarefas que coubessem na doce vida do lar. E ele não reclamava, apesar de sentir falta dos clientes na sapataria. Afinal de contas, quem poderia pensar em consertar sapatos numa hora dessas?

Para quem vivera guerras, ditaduras e revoluções, o presente de Alberto era tão pacato quanto um sopro repentino de ar fresco. Lidava com seus bonsais no jardim e cultivava leituras variadas, que iam da poesia de Hilda Hilst aos thrillers do norueguês Jo Nesbo. Sentia-se confortável entre ideias disjuntivas, capazes de fazê-lo pensar a partir de muitos pontos de vista. Com o avançar da idade, o gosto pela riqueza de ideias, sonhos e propostas de mundo só aumentara. Alberto, enfim, vivia muitíssimo bem.

Naquela manhã de domingo, enquanto aparava seus bonsais mais antigos, viu um de seus vizinhos ao portão, chamando-o. Alberto, usando máscara, foi ver do que se tratava a visita inesperada. O vizinho – melhor deixá-lo sem nome – demonstrava impaciência, aguardando agoniado que Alberto alcançasse a entrada da casa.

– Alberto, Alberto! Não aguento mais essa vida! Vou enlouquecer dentro de casa!

Ainda surpreso, Alberto tentou acalmar seu vizinho.

– Calma, meu caro. Ontem tomei a segunda dose da vacina. Isso já é um alento. Permite que tenhamos esperança...

– Esperança? Vacina? Eu não vou tomar nenhuma vacina, Alberto! Isso é um complô internacional! Essa história de pandemia está muito mal contada! Não vê que o próprio presidente da República disse que não vai tomar também! Ele diz que isso é uma estratégia da China para quebrar o Ocidente...

Alberto quase visualizava os pontos de exclamação nos dizeres do vizinho. Era uma indignação exageradamente exaltada. Sem perder o ponto de equilíbrio, o velho sapateiro buscou alguma convergência.

– Não é conspiração, não, vizinho. O vírus existe, as pessoas estão adoecendo. O número de mortes cresce a cada dia. Nosso país não faz ideia de como encarar a crise...

– Crise? E o trabalho das pessoas? E a economia? O presidente está pedindo para que encarem tudo com normalidade, que parem todos de “mimimi”...

Alberto atravessou a fala de seu interlocutor.

– A maior crise, neste momento, não é a econômica, vizinho. Estamos diante de algo sério e aquele que você chama de presidente não está fazendo nada: não dá o exemplo, não lida com a questão como um estadista, boicota a ciência, só abre a boca para dizer besteiras. É um genocida, sem tirar nem pôr.

– Essa história de comunismo, anarquismo, sei lá, ainda vai matar você Alberto! Está atrapalhando sua visão, seu discernimento das coisas! Quer saber, eu que não uso máscara não peguei nada, minha velha não pegou nada, essa doença é balela. Passar bem, Alberto!

Alberto, abatido, voltou para seus bonsais. Lembrou que genocidas necessitam de apoiadores. Todo massacre, lamentavelmente, teve plateia extasiada. Pensou no livro da tarde, animou-se. Feliz aquele que não precisa pensar como seus vizinhos.