Uma das imagens fortes que tenho da infância é a de um pequeno quadro de madeira, na sala de casa, com a oração “Pegadas na Areia”. Trata-se de um texto de conhecimento quase universal: narra a história de um indivíduo que percebeu, nos momentos mais difíceis da vida, estar sendo carregado por Deus em seus braços – por isso, em meio ao sofrimento, só conseguia enxergar um par de pegadas no chão.

Cresci acreditando que nunca estou sozinho, mesmo nos momentos de grande solidão. Talvez por ser muito afeito à leitura e à escrita, acostumei-me a passar a maior parte do tempo isolado, à cata de silêncio e de um cantinho aconchegante. Além dos livros, meus filmes e discos ainda são minhas mais importantes companhias, com os quais divido os dias e, principalmente, as minhas interrogações.

Quando batem dúvidas existenciais ou se insurgem os conflitos inerentes à vida, projeto-me na imagem do sujeito sendo carregado por Deus, acolhido, amado. Apesar de ser professor, ter me habituado a falar para multidões e parecer extrovertido, sou retraído e bastante tímido. Meus alunos costumam duvidar disso, mas é fato que eles nunca irão me encontrar fora de sala de aula conversando à toa com desconhecidos ou

dançando livremente pelas ruas.

Nesse sentido, desenvolvi com Deus uma intimidade muito peculiar. À noite, antes de dormir, divido com ele minhas pequenas e enormes questões; peço que proteja meus familiares e amigos; rogo por saúde e disposição para trabalhar e cuidar do meu filho; insisto que promova a paz e a solidariedade entre todos os seres humanos; recordo que tenho projetos, sonhos e desafios para encarar e necessito de um pouco mais de

coragem. Em todo caso, começo essa “conversa” agradecendo a vida que levo e o tempo percorrido. Ao amanhecer, digo muito obrigado pela noite de sono e por mais um dia pela frente.

Por mais que seja apontada como o pior dos males do século 21, a solidão nunca me fez mal, até porque a considero um instante necessário antes da volta ao mundo. Para ter o que dizer e saber o que fazer em público, é vital o recolhimento. Além disso, como disse, sinto-me amparado por Deus quando obrigado a me retirar de cena para pensar, escrever, cuidar de mim. Se fôssemos – nós, seres humanos – tão somente animais

coletivos, seríamos indistintos, presas fáceis de uma suposta natureza que tende a nos uniformizar.

Nas sociedades capitalistas e neoliberais, em que bandos gritam palavras de ordem, reproduzindo preconceitos e toda sorte de estupidez, há carência de refúgios, de olhares introspectivos, de autocríticas permanentes. É por isso que ideologias violentas tanto seduzem, inibindo a consciência crítica, a autonomia intelectual e a valorização da singularidade inventiva e criadora.

Incitados a concorrer uns contra os outros, intuindo obter vantagem e lucro, os indivíduos se dissociam de sua metade universal, daquilo que pode humanizá-los. Na vida ideal, haveria um equilíbrio entre o “eu” e o “nós”, de modo que seriam estimuladas todas as formas de amar e existir. Falta-nos multiplicar as pegadas na areia.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.