Considero legítima toda forma de construção de uma identidade coletiva. É reincidente na história a reunião entre iguais, seja por questões culturais, seja por determinações econômicas ou políticas. Assim, tornam-se mais fortes os grupos de mulheres, negros, indígenas, jovens, populações LGBTQIA+ etc. É também comum e revigorante a união que se faz em torno de temas como corpo, territorialidade, ideologia e uma infinitude de possibilidades.

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Num tempo em que os donos do mundo se revelam tão hostis à diversidade e cada vez mais sedentos por poder e riqueza material, mais do que legítimas, essas reuniões se convertem em estratégia de resistência. Sem que haja intersecções entre aqueles que se veem pertencentes a um mesmo universo de carências e expectativas, a fragmentação impede a luta e perpetua a desordem usual das coisas.

Mas há problemas sobre os quais ponderar. Na ânsia por se tornar único, cada agrupamento tende a rejeitar os outros, definir inimigos, reduzir os horizontes. Não é necessário frisar a perda progressiva da consciência de classe para compreender o que está em jogo: para muito além de visões estilhaçadas de mundo, a proliferação de grupelhos fragiliza os movimentos por um mundo melhor, que se perdem em discursos desconexos, bandeiras incompatíveis, forte intolerância e, no limite, explosão de variados mecanismos de violência.

Insisto sempre que a característica distintiva da esquerda como cosmologia é a solidariedade. Posicionar-se no lugar do outro, sensibilizando-se com suas causas e angústias, faz do humano um ser melhor, mais completo, voltado para urgências que ultrapassam as fronteiras de sua individualidade. Na linguagem contemporânea, falamos muito em afetos. Pois é exatamente isto: precisamos nos afetar uns aos outros, tentar sentir aquilo que nos torna semelhantes em alguma medida, compreender que é na diferença que reside a chance de aprendermos a novidade, feita sob medida para a desejada transformação da realidade que nos oprime e estigmatiza. Presos entre iguais ou satisfeitos com aquilo que já é conhecido, damos adeus à mudança. Os “de cima”, então, agradecem e confessam, entre gargalhadas: “Enquanto os ‘de baixo’ se odeiam, nós permanecemos exatamente onde estamos.”

Crescemos quando ouvimos quem vem de longe e intui falar para todos. Penso, por exemplo, em autores como Marx, Gramsci e Benjamim, a mim tão caros. Eles estão na Europa de outra temporalidade e são portadores de esperanças que talvez não se casem com as minhas. O epicentro de suas palavras e ações, contudo, permanece pulsando, sendo útil às bandeiras que hoje julgo verdadeiras. Se eu me dispusesse a negá-los por não pertencerem à minha “quebrada”, chutaria para escanteio lições de inteligência e universalidade.

A democracia é essa formidável vivência entre sujeitos que se complementam em sonhos. Para que seja efetiva, é fundamental que seja um sentimento que valorize o diálogo e a abertura para a diversidade. Definitivamente, o inferno não são os outros.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.