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Num pequeno livro de reflexões, escrito no formato de cartas aos leitores e intitulado “A resistência”, o intelectual argentino Ernesto Sabato lamenta profundamente a pressa que nos envolve no mundo contemporâneo. Em permanente estado de ansiedade à flor da pele, os indivíduos não observam mais a vida ao redor; perderam a capacidade de ver, ouvir e dizer com serenidade e desejo. No mundo da velocidade que tenta inibir as restrições ao consumo e estimular os ímpetos em relação às coisas e suas armadilhas, cada um é apenas um, indiferente e atordoado.

O “flâneur”, que em francês significa simplesmente “vagabundo”, era o oposto desses átomos dispersos e reversos dos dias atuais. Charles Baudelaire, pensador de marginais (e, por favor, tentem entender esse termo de forma elogiosa e admirável), via o “flâneur” como o sujeito que experimenta a cidade, sua gente, suas luzes e labirintos. A busca do “flâneur” é pelo espaço ideal – parques, praças, lugares em que humanos se reúnam para fugir à transitoriedade urbana. O olhar do “flâneur” quer apenas um abrigo no caos da cidade. É por isso que, após longas jornadas por becos e vielas, ele se transforma no narrador de histórias de gente à beira do abismo.

O filosofo alemão Walter Benjamin, um dos maiores e mais importantes pensadores do século XX, compreendia o “flâneur” como um fenômeno típico da modernidade. Em meio à multidão, seu caminhar era leve e despreocupado; havia nele uma autonomia invejável, uma poesia rara. O “flâneur”, acima de tudo, era uma vida livre na selva de neoescravos baldados e maltratados entre avenidas e edifícios, filas e desamor.

Volto, então, a Ernesto Sabato.

Em seu opúsculo precioso, o saudoso “hermano” se pergunta como é possível viver nas metrópoles do planeta. Barulho, poluição, desencontros, gente à cata de mais posses para se tornar menos humana... O “flâneur” que sobrevivia ao caos (o arguto caçador urbano de Baudelaire), o errante de refinado olhar (o anti-herói de Benjamin), é figura em extinção. Por toda parte, o que se vê e encontra são seres delirantes, contaminados pela pressa, pelo fugaz e pela falsa promessa de felicidade da sociedade de consumidores. Nesta realidade, a sensibilidade converteu-se em artigo de luxo.

Há poucos “flanando” pelas ruas do mundo, fabricando versos na escuridão, narrando os sinais do absurdo e, ainda assim, nunca se separando da esperança. No fundo, a vida de cada um é um incessante escrutínio pela revelação do último “flâneur”, aquele cujo coração merece o amor de todos.