O estranho caso do jovem que ama a ditadura
O garoto, um adolescente imberbe, vestia uma camiseta preta, na qual se lia, em grandes letras brancas: “Ustra Vive”
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quarta-feira, 05 de abril de 2023
O garoto, um adolescente imberbe, vestia uma camiseta preta, na qual se lia, em grandes letras brancas: “Ustra Vive”
Marco A. Rossi
Na semana passada, durante uma caminhada matutina pelas ruas de Londrina, avistei um rapaz vindo em minha direção. Ao nos cruzarmos, senti um forte aperto no peito. O garoto, um adolescente imberbe, vestia uma camiseta preta, na qual se lia, em grandes letras brancas: “Ustra Vive”.
Entendi que se tratava de um sinal. Afinal, era 31 de março, aniversário de 59 anos do fatídico golpe civil-militar de 1964. Sabe-se que os “chefões” romperam a institucionalidade brasileira em 1.º de abril, dia da mentira. Para não entrarem para a história como peça de anedotário, recuaram o evento no calendário. De todo modo, é uma data triste, que devemos recordar para nunca mais permitir que se repita, sob nenhuma hipótese.
Voltando ao garoto. O senhor Ustra que ele estampava em sua veste foi um torturador execrável. Depoimentos emocionados de suas vítimas apontam uma criatura fria e sádica, que aterrorizava mulheres com sevícia e declarado prazer. Era visto com horror até mesmo entre alguns de seus pares do regime de exceção. Já idoso, tentou transmitir a imagem de um indivíduo frágil e idôneo, pai de família. Não colou. Sua maldade não estava na figura cultivada de “homem de bem”; estava naquilo que praticou, nas ideias que comungou, na ditadura que defendeu com muito sangue nas mãos.
À noite – era uma sexta-feira – fui para a UEL dar aula. Expus o episódio aos alunos e pedi que refletíssemos juntos sobre o papel da educação no combate a esse tipo de “esquecimento”. Eu falava das ideias de Octávio Ianni, que na década de 1980 organizou um conjunto de razões para que a Sociologia se tornasse uma disciplina enraizada nos currículos escolares. O foco do saudoso sociólogo era a formação de espíritos críticos, atentos, orientados pela nossa sofrida brasilidade. Dizia ele que à educação caberá sempre a tarefa de desnaturalizar os fatos, dando-lhes caráter humano, político, sempre provisório e passível de transformação.
Deixei o campus me sentindo mais leve e feliz. Percebi que há nos jovens – na maioria deles – uma clara disposição para fazer valer a verdade, a memória, o legado das lutas daqueles que nos antecederam. A questão do enfrentamento de um passado de censura, perseguição, tortura e morte diz muito pouco sobre ideologia. O fundamental é a preservação de uma forte vocação democrática entre as novas gerações. Isso é que deve pesar e importar.
Walter Benjamin ensina que nem os mortos estarão seguros se os inimigos vencerem. Nesse sentido, iluminar o passado corresponde a abraçar o presente como instante vivido, como marco das experiências responsáveis pela elaboração do futuro. Daí a urgência em defender a liberdade, em criticar os problemas da atualidade, em aspirar a um tempo novo, desbarbarizado.
Esse estranho caso de um jovem que ama a ditadura é evidente demonstração de que existe baixo e relativo apreço geral pelos valores mais caros ao longo e tenso processo civilizatório. “Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos.”, declamava Rosa Luxemburgo. Axé
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