Numa sociedade hipercompetitiva e eticamente problemática, é compreensível que a desconfiança seja generalizada. O capitalismo não poupa esforços na hora de distribuir animosidade e extremo individualismo no seio da vida coletiva. Quem quer que procure honestidade ou espírito dadivoso sofre duras decepções. Basta que pensemos na agrura que é levar o carro ao mecânico ou solicitar um orçamento para algum serviço em casa. Nunca se sabe se a verdade virá junto com as pessoas.

Paradoxalmente, nunca se falou tanto em Deus, bondade e eternidade. Os mais inescrupulosos sujeitos fazem o que fazem em nome de uma recompensa que juram merecer. Deus – uma entidade que virou qualquer coisa nas relações intersubjetivas – está com cada um e contra todos os outros. É comum ouvirmos que Deus livrará seus crentes dos inimigos. Numa convivência forçada e hostil como é a da sociedade das mercadorias, todos viramos objeto da insatisfação dos outros, os culpados pelo mal-estar alheio. É como se Deus lava-se as mãos e gritasse: “Salve-se quem puder”.

Cresci num meio no qual fui me convencendo de que Deus é amor e justiça. Não cabe na minha cabeça que ele abençoe os milionários e abandone os pobres, que bendiga os malfeitores e hostilize os rebeldes em busca de vida plena. Da mesma maneira, tenho extrema dificuldade em acreditar que Deus impeça o amor sincero entre as pessoas, seja esse sentimento dirigido a homens, mulheres ou indivíduos trans – o Deus em que sempre depositei fé endossa que toda forma de amor é sagrada.

O horror ao outro é a negação de Deus, não uma homenagem à sua onipresença. Se nutrimos algum tipo de preconceito, enlameamos o corpo de Deus e agredimos seu espírito. Aqueles que praticam a discriminação podem ser qualquer coisa, menos gente que pensa, fala ou age de acordo com Deus. Racistas, misóginos, homofóbicos, transfóbicos, xenófobos e todos que exaltam fobias inumanas são motivo de tristeza para Deus e espelham o tanto que o projeto humanidade descarrilhou sob o mundo do capital e do lucro fácil, conquistado à custa da exploração do outro, do esmagamento daqueles que deveríamos tratar como irmãos.

Alegro-me quando vejo gente como Padre Júlio Lacellotti acolhendo moradores de rua, dando-lhes pão e afeto, abrigo e coração. Assim como ele, há muita gente elevando a ideia de Deus, multiplicando a luta por justiça, esparramando amor entre os seres humanos. Devemos, pois, nos cercar desse tipo de ser vivo.

Deus reside na luta pela repartição da terra e nas articulações pela proteção do planeta, pela distribuição do alimento, pelo combate à ostentação, pelo enaltecimento de práticas de simplicidade, inteligência e forte humanismo. Aquele que nos criou espera de nós uma educação gratuita, aberta e pública; uma saúde acolhedora e capaz de oferecer dignidade a todos; um conjunto de valores que pregue a solidariedade e um envolvimento amplo entre o humano e a natureza. Deus roga que estejamos à altura de superar o capitalismo e construir um mundo em que o centro de tudo sejamos nós, seus filhos.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.