Ficou conhecida a imagem do Padre Júlio Lancellotti quebrando a marretadas pedras que impediam o acesso de moradores de rua à parte inferior de um viaduto, na cidade de São Paulo. A imagem correu o Brasil e, é claro, dividiu a população.

A ocasião fez surgir entre nós a expressão “aporofobia”, que, de origem grega - “à-poros” (pobres), mais “fobos” (medo) -, significa ódio ou aversão aos pobres. A palavra não é nova. Foi utilizada, na década de 1990, pela filósofa espanhola Adela Canto, para designar as hostilidades múltiplas que indivíduos, grupos e sociedades dirigem aos mais pobres.

A questão, aliás, passa exatamente pelo reconhecimento dessas hostilidades. Ninguém admite sentir “aporofobia”, assim como nenhum ser se declara machista ou racista a céu aberto. É na arquitetura das cidades, nas políticas públicas e no comportamento cotidiano que a “aporofobia” aparece com todas as suas singularidades.

As cidades são tomadas por grades, lanças e muros. A ideia é afastar o outro, esse enigma que alimenta o medo que temos de nós mesmos. Por toda a parte, há indícios de “aporofobia”, seja em pequenas muretas com cacos de vidro, seja em enormes muros eletrificados. O pobre, enfim, fica impedido de se locomover e busca alento longe dessas armadilhas. A aversão se revela no desejo de não dividir espaços com aqueles que não são como nós. Assim como nas redes sociais, vivemos a vida real em bolhas, buscando reafirmar nossas opiniões e também nosso pobre apreço estético da vida.

A “aporofobia” se revela também nas controversas campanhas que pedem para que não se dê esmola aos moradores de rua ou aos pedintes nas esquinas. Passa-se a impressão de que a pobreza é responsabilidade dos outros, esses que, no plural, apontam para ninguém. Ao mesmo tempo que o poder público promete encaminhar os pobres para as secretarias de ação social, crescem as denúncias de prefeitos que lotam ônibus com moradores de rua e os despejam em cidades vizinhas. Nesses casos, a “aporofobia” é muito mais do que preconceito; é ódio e nojo explícitos.

Padre Júlio Lancellotti diz que é preciso transformar a hostilidade em hospitalidade. Em vez de segregar, como já faz a geografia das grandes cidades, acolher; no lugar de evitar ou virar as costas, abraçar e deixar-se tomar pelo amor da irmandade. Pode parecer mero discurso de sacerdote em busca de fiéis, mas, no caso de Padre Júlio, é tão somente a revelação de uma vida honestamente dedicada aos subalternos.

A “aporofobia” não poupa ninguém. O desejo de viver “em paz”, longe de gente que traga problemas ou aborrecimentos é um dado de nossa formação cultural. Lançar os diferentes e indesejados à fogueira é algo que está por trás de atitudes formativas de nossa consciência, como, por exemplo, negar um bom debate sobre as origens de nossa miséria social. Se enfrentássemos a esfinge que nos interpela, saberíamos que estamos sendo devorados.

E assim seguimos em frente, alheios, atordoados, disseminando, sem perceber, a “aporofobia” - e fazendo um país cada vez mais difícil e inviável.

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. | Foto: iStock

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