O antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) pedia a seus leitores que não esperassem dele análises isentas: era um sujeito de partido e fazia questão de anunciar suas ideias e opiniões. Faz falta a hombridade do autor de “O povo brasileiro”. Hoje há quem criminalize aqueles que não se escondem sob falsa neutralidade. Como dizia um velho mestre, neutro só sabão.

Sigo a trilha deixada por Darcy Ribeiro. Para além e antes de todo caráter objetivo, os fatos se apresentam a pessoas de carne, osso e espírito – e serão vistos pela subjetividade inerente aos sentidos que buscam compreendê-los. Respeitar a objetividade dos acontecimentos não é a mesma coisa que inibir intenções de lançá-los à luz do dia.

Penso nisso num momento em que o Brasil se torna o epicentro da crise global desencadeada pelo coronavírus. A chamada “guerra de narrativas” vem desempenhando papel central na formação das consciências a respeito de tudo que está sendo (ou poderia ser) feito para combater a Covid-19. De um lado e de outro (supondo, de modo equivocado e propositadamente, que só haja dois lados em questão), surgem bodes expiatórios e salvadores da pátria. Todo o mundo tem a solução final para um mal repentino que colocou abaixo (ainda bem) a velha era de confiança ilimitada no progresso.

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O problema não são as opiniões; são as certezas cegas e o caráter miliciano de certas militâncias partidárias. Para quem nutre convicções inabaláveis, a verdade está logo ali, tem morada e jamais se engana. Esse tipo de gente (perdoem-me o aparente desdém) aceita maltratar os fatos, interpretá-los pelo avesso, intimidá-los e corroê-los, tudo para que seu ponto de vista seja considerado a neutralidade em pessoa, a fiel e mais bem-acabada versão dos acontecimentos.

O Brasil já soma mais de 300 mil mortos pela Covid-19. Isso é um fato. Designar um ajuste de contas com a realidade é analisar o amplo campo de possibilidades aberto pela inteligência e a sensibilidade. Antes de tudo, anunciar a tristeza diante dos números. Há vidas em luto diante de tanta perda e sofrimento. E mais: se houvesse uma ação orquestrada e central por parte dos dirigentes políticos, esses números poderiam ser outros, bem menores e menos dolorosos. É aí que entre a subjetividade de quem não se esconde em suposta neutralidade: outros países obtiveram melhor desempenho no combate à pandemia. Por quê? Que fizeram? Que riscos aceitaram correr? Que sacrifícios puseram à mesa? Que tipo de política expuseram de fato?

A verdade talvez seja inatingível. Cercá-la e aproximar-se dela, no entanto, é um esforço interpretativo dos acontecimentos. Quanto mais honestidade, melhor. É por isso que sinto falta de Darcy Ribeiro e de suas lúcidas interpretações do Brasil. Ele não almejava a posse de todos os saberes, mas não se negava a dizer que sua sabedoria era fruto de crenças particulares e opiniões abertas. Ele não era neutro. Por isso, deixou-nos a esperança como exigência ética e a solidariedade como valor civilizatório.