Os mais surreais cenários e personagens habitam meus sonhos. Quando me lembro do que passou pela minha cabeça durante a noite, fico agoniado. Precipícios, monstros, desastres naturais, amores vãos e vis, aventuras épicas, tudo é hiperbólico. Se fosse traduzir o que sonho em palavras, uma seria de grande destaque: medo.

Medo é também o que diz sentir mais da metade dos brasileiros a respeito do “comunismo”, segundo recente pesquisa divulgada pelo Instituto Data Folha. Afinal, que monstro é esse que reside na cabeça dos cidadãos ainda acordados? Qual sua provável origem e por que se converteu em objeto assustador ou, no mínimo, preocupante? As respostas que logrei algum êxito em encontrar são, para dizer pouco, meio desanimadoras.

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É óbvio que não se trata de uma ideia de “comunismo” que faria valer um mundo em que todos somos iguais, temos os mesmos direitos e deveres e nos reconhecemos em nossa mais grandiosa humanidade. Do mesmo modo, é de fácil constatação não estarmos discutindo acerca de um “comunismo” de ascendência cristã, graças ao qual amaríamos ao próximo como a nós mesmos. O bicho que apavora a meia parcela menos atenta do país é de nascimento obscuro, atravessado por mentiras, discursos corrompidos pelo preconceito atroz e muita má vontade em relação aos temas que deveriam, de fato, ocupar corações e mentes.

Sabemos que não há no Brasil, hoje, nenhuma força política capaz de implantar um regime político autoritário e burocrático como foi o da União Soviética sob Stálin. Os tempos, para quem quer perceber, são outros. Vivemos numa democracia frágil e imperfeita, mas que, definitivamente, já escolheu qual caminho deseja percorrer. O desafio que temos é o de vencer os obstáculos deixados por uma dura cultura política de mandonismo, segregação e toda sorte de violência e ódio. São os escombros dessa amarga tradição, aliás, que repercutem a existência de um “comunismo” ameaçador entre nós.

O “comunismo” que tira o sono de metade da população é, portanto, um delírio. Não faz muito tempo, um autointitulado filósofo (hoje em sacrossanto silêncio) disseminava que tudo era “comunismo”: a mídia, a universidade, a justiça, todas as personagens que não pactuavam com ele de uma medíocre concepção de “verdade”. O indivíduo em questão arregimentou alguns milhares de incautos e acelerou o processo de esvaziamento do pensamento no Brasil. A partir dele (mas não só) surgiu essa noção de “comunismo” diabólica que escamoteia os males do capitalismo, desvirtua o debate público e rebaixa a níveis do pré-sal o bom senso e a verve crítica das pessoas.

A extrema direta em franca atuação ideológica e política no país é resultado prático e teórico dessas alucinações, responsáveis por esparramar o que há de pior em nossa vida social e inspirar os mais criminosos comportamentos. O “comunismo” de que têm medo os brasileiros é a sombra dessa covardia travestida de filosofia, que oculta a realidade e sobrevive da exploração de caricaturas. A democracia, como podemos ver, tem de lidar com inimigos vivos e mortos.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.