Os bons dicionários da língua portuguesa registram, como sinônimo da palavra “fanatismo”, o substantivo “paixão”. O fanático seria, então, um apaixonado. Mas que tipo de sentimento invade e arrasta a mente de um fanático?

Imagem ilustrativa da imagem Luzes contra o fanatismo
| Foto: Naomi Woods/iStock

O escritor israelense Amós Oz (1939-2018), nos ensaios publicados no livro “Como curar um fanático”, faz um diagnóstico vibrante desse tipo tão peculiar de sujeito tomado pela paixão. O fanático seria, em princípio, alguém que deseja o bem ao seu próximo. Ele é tão altruísta que quer dedicar toda a sua vida ao outro. Ele sonha escolher a roupa, a comida, a música, a fé, a ação de todo o mundo. Ele intui revelar a “verdade”, indicando o caminho da justiça e da decência. Em nome dessa paixão incontrolável, o fanático pode praticar uma grande variedade de coisas más, mas sempre para o bem da humanidade. Sua vida é de sacrifício: ninguém pode ousar lhe dar as costas. Ele é como um porta-voz de luz, uma vez que se pensa escolhido. É o tipo de indivíduo que se derrete em lágrimas quando grita: “Olavo tem razão”.

Amós Oz acredita que o fanatismo é imune ao senso de humor. Não há fanático que saiba, sinceramente, rir, achar graça na vida e compartilhar alegria. Para muito além disso, ele é absolutamente incapaz de rir de si mesmo. Na medida em que não pode estar errado – a “verdade” o carrega nos braços diuturnamente –, riria de quê? Que tipo de autocrítica realizaria alguém que está sempre certo diante de um universo de gente errada? O fanatismo é sempre um filme de horror.

Depois de mortos, Hitler e Stalin entregaram um enorme presente à humanidade, afirma Amós Oz. Sem querer, lógico, ofereceram às duas gerações seguintes às suas barbáries um alerta moral contra o fanatismo e os mais diferentes tipos de ódio e preconceito. A derrota histórica de Hitler e Stalin definiu um certo consenso público em torno da democracia e dos valores liberais, como a defesa incontestável das liberdades de expressão, credo e trabalho. Em síntese, houve uma espécie de vacinação global contra aquela paixão de querer que o outro fosse assim e não assado, deste e não daquele jeito. As gerações presenteadas – sem querer, vale repetir – pelos ridículos líderes totalitários passaram a ser “da paz”, democratas, liberais em costumes e combatentes de privilégios, injustiças e excessos tanto do Estado quanto do Mercado.

Ocorre, adverte Amós Oz, que o prazo de validade desse presente tão grandioso está vencido. Por isso, assistimos atônitos à escalada do ódio nas sociedades contemporâneas. O fanático está à solta mais uma vez. Antes envergonhado e escondido, agora destila seu ódio sem constrangimentos, expondo em público sua miséria humana.

Na impossibilidade de distribuir cápsulas de senso de humor em larga escala pelo planeta, como brincava Amós Oz, a saída continua sendo a defesa da democracia, dos princípios iluministas, do respeito à diversidade, da exaltação da liberdade. E um pouco mais: negar a simplicidade dos fatos e celebrar a complexidade da vida, na qual não há certo e errado. Como assegura Amós Oz, em todos os lados há certo e certo, errado e errado. Escapar ao fanatismo é abrir mão de achar que só há uma luz. Há luzes. Sempre.