Norberto Bobbio (1909-2004) costumava dizer que o liberalismo e a democracia estavam estreitamente relacionados no mundo contemporâneo, não obstante, desde o berço, terem se estranhado bastante. Sintetizar a garantia das liberdades individuais e a defesa de uma participação política soberana do povo não é tarefa das mais fáceis. Incrédulos à esquerda e à direita dirão mesmo que se trata de algo impossível. Bobbio, contudo, apresentava argumentos convincentes.

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Onde não há a primazia da ideia liberal, atestava o filósofo italiano, a democracia não floresce. E sem democracia, a defesa dos direitos humanos, a legalidade acima da arbitrariedade, o combate aos privilégios e a tolerância em relação à diversidade das formas de vida – tudo isso pensado como sinônimo de liberalismo – não são exequíveis. Observando o mapa-múndi, todas as democracias são também liberais. As ditaduras (orgulhosas ou envergonhadas), por sua vez, são avessas ao liberalismo e à democracia, em igual medida. A questão, portanto, é a de tomar o liberalismo como uma verdadeira “largueza de espírito”.

Numa época em que governos e sociedades civis vêm flertando diuturnamente com o que há de pior na tradição autoritária (a tentativa de construir a vida social a partir do Estado, de cima para baixo, sem diálogo nem empatia, com muito ódio e perseguição ideológica), faz imenso sentido restabelecer lugar ao liberalismo como uma ideia forte, de enraizamento histórico e pluralidade de manifestações. Bobbio insistia, por exemplo, no caráter iliberal daqueles que misturam de maneira grosseira o público e o privado, desestimulando a cidadania e reduzindo a esfera pública à proteção de fortunas individuais.

O liberalismo, devidamente acompanhado da democracia, indispõe-se tanto com o “mínimo” quanto com o “máximo”. Defender um Estado ausente da vida pública, sem ações efetivas nos campos da ciência, da educação, da cultura e da saúde, é acreditar que o lucro econômico é o motor da história, que as relações “espontâneas” entre indivíduos bastam para botar ordem na coexistência. Mario Vargas Llosa, um liberal, nascido em 1936, em Arequipa, Peru, tem por hábito chamar esses tipos humanos de “monetistas”, adictos da infeliz ideia de que o dinheiro resolve tudo. Esse é um vício criminoso, que converte a desigualdade social num fenômeno “natural”, contra o qual pouco pode ser feito. Surgem dessa abjeção os pregadores da caridade e do paraíso após a morte. Trata-se de uma gente completamente insana e... iliberal!

Os iliberais são também antidemocráticos. Detestam a participação política dos inúmeros grupos que compõem a sociedade e defendem as “biografias superiores”, os “mitos”, os líderes populistas “iluminados”. Para gratinar sua alucinação, os desafeitos a uma república democrática e liberal afirmam que é preciso varrer do mapa tudo que está errado. Esse “varrer” é uma missão dos “patriotas”, dos defensores da “família” e da “moral cristã”, os quais vão higienizando os espaços em que vicejam ideias, debates, vida sensível. Afinal de contas, “stalinistas” são os outros.

O cientista Stephen Hawking (1942-2018) dizia-se um liberal-socialista, assim como Norberto Bobbio. Ambos acreditavam na liberdade e entendiam ser necessária uma esfera pública protegida dos sedentos pelo vil metal. Albert Einstein (1879-1955) pensava algo bem semelhante a seu próprio respeito, uma vez que apreciava a busca da igualdade como o elixir da liberdade. Um amplo espectro de intelectuais e pensadores vem atravessando o tempo histórico se esforçando por entrelaçar o melhor da tradição liberal e socialista. José Guilherme Merquior (1941-1991), para citar um dos mais brilhantes e eruditos pensadores brasileiros, intitulava-se um “social-liberal”, um representante da corrente liberal verdadeiramente preocupada com a questão social.

O desaparecimento de liberais humanistas e iluministas tem empobrecido a sociedade no Brasil e no mundo. Encontrá-los, convocando-os para o debate público, é dever de quem tem “largueza de espírito” e ainda sonha com uma realidade cosmopolita.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]