Existem sentimentos que não conseguimos verbalizar. O mundo dos sentidos tem seus próprios códigos de acesso e compartilhamento. O fato é que fenômenos como a perplexidade, por exemplo, mexem com os ânimos, mas não costumam ser fáceis de explicar.

O que dizer de um parlamentar campeão de votos que ocupa a tribuna do Congresso Nacional para destilar ódio de gênero e discursar de maneira aberta e desavergonhadamente transfóbica? O que relatar a respeito de muitos outros congressistas que o aplaudiram e até o chamaram de “mito”? Talvez seja razoável discutir com um mínimo de sensatez a justa e indignada reação de alguns colegas de ofício que rejeitaram o conteúdo preconceituoso da fala, denunciando seu viés de ignorância e desrespeito. O problema é que o razoável não atiça ninguém, não produz polêmica, não gera desconforto. Numa realidade cada vez mais on-line, o que se quer é clique, like e deboche.

No campo do riso, parece que anda valendo tudo. Piadas contra negros, deficientes, indígenas, mulheres e indivíduos da comunidade LGBTQIA+ correm ruas, praças e timelines. Gargalhar à custa de corpos e espíritos que apanham historicamente virou esporte popular (ou antipopular, numa perspectiva mais humanista). Difícil continua sendo a piada inteligente, rebelde, corajosa a ponto de desafiar o poder e seus titulares. Sejamos honestos: dá muito trabalho elaborar discursos que trafeguem na contramão e aspirem a mudanças estruturais na sociedade. Refastelar-se com a dor dos outros, daqueles que são mais vulneráveis, é cômodo e bastante covarde. Aliás, de quantas covardias o ódio é feito?

A repercussão da quase indizível atitude segregacionista do parlamentar em pleno 8 de março, dia internacional das mulheres (assim, no plural), dividiu opiniões, como tudo neste país, sei lá, nos últimos dez anos. Em alguns sites e perfis de extrema-direita sobraram elogios ao discurso pueril. (Houve quem visse no episódio apenas um exercício de liberdade de expressão, acobertando, com isso, uma clara exaltação criminosa e violenta das palavras.) Na maior parte da grande imprensa e nos veículos de tom democrático, tornou-se hegemônico o repúdio, bem como a cobrança das autoridades competentes para que haja punição exemplar. Não é admissível que em pleno século 21 molecagens subam ao palanque republicano e proclamem a barbárie. Cerrar os olhos diante de fatos dessa natureza é conceder ar de normalidade à prática raivosa que se espraia por toda parte. Sabe aquele grito de ordem “Anistia não”? Pois é. Levemos isso muito a sério.

Entre nós, brasileiros, um dos grandes desafios continua sendo o de separar as dimensões pública e privada da vida. É da postura democrática respeitar aquilo que é comum como algo acima das minudências particulares. Nesse sentido, o respeito é vocação exigida pela cidadania. Não pode haver exceções. Quem quiser alimentar ranços e preconceitos que o faça sozinho, isolado do mundo, dentro dos insignificantes limites de sua personalidade desprezível.

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