O escritor peruano Mario Vargas Llosa, nascido em 1936 na bela Arequipa, é autor de romances impactantes. Livros como “Casa Verde”, “Tia Julia e o Escrevinhador”, “A Guerra do Fim do Mundo”, “A Festa do Bode” e “Travessuras da Menina Má” – para citar escritos publicados em diferentes décadas desde os anos 1960 até o início do século 21 – consagram a beleza narrativa, a densidade das pesquisas históricas e a criatividade literária de Vargas Llosa.

Imagem ilustrativa da imagem Imaginação liberal de Vargas Llosa
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É impossível escapar indiferente à leitura dos livros deste Prêmio Nobel de Literatura, os quais, de muitas maneiras, leem e traduzem o próprio leitor.

A mais recente publicação de Vargas Llosa, “La Llamada de la Tribu” (ainda sem edição brasileira) traz uma espécie de autobiografia intelectual. Tal qual “Liberalismo, antigo e moderno”, do diplomata brasileiro José Guilherme Merquior, “La Llamada de la Tribu” é um testamento das ideias que fizeram a cabeça de seu autor e o lançaram ao debate público, à defesa de princípios e valores que ultrapassam crises e conjunturas, delineando um modo de ser e viver.

Num e noutro livro, o destaque é para o conjunto de pensadores que marcaram a formação da visão liberal do mundo, com suas rupturas e continuidades, divergências e convergências. Em comum, Merquior e Vargas Llosa têm a predileção pela liberdade em franca oposição aos variados modos de moldar as vivências coletivas, planificar a vida econômica e obstruir o desenvolvimento da experiência individual nos processos civilizatórios.

“La Llamada de la Tribu” contém sete ensaios biográficos sobre sujeitos que Vargas Llosa elege decisivos em sua longa travessia do marxismo ao liberalismo. Trata-se de pensadores que o fizeram abandonar uma perspectiva dogmática (uma “religião laica”) e aderir a uma cosmologia aberta, tolerante e democrática.

Os autores contemplados no livro são o escocês Adam Smith (1723-1790), o espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), os austríacos Friedrich Hayek (1899-1992) e Karl Popper (1902-1994), o letão Isaiah Berlin (1909-1997) e os franceses Raymond Aron (1905-1983) e Jean-François Revel (1924-2006).

Um texto introdutório de caráter confessional apresenta detalhes do desencanto de Vargas Llosa com o socialismo e sua gradual aproximação às ideias liberais.

Decepções com as andanças da Cuba pós-revolucionária, que segregava dissidentes políticos e homossexuais, e uma malograda visita cultural à União Soviética, onde percebeu que seria confinado em gulags se lá tivesse nascido, foram atos derradeiros na tensa conversão ideológica de Vargas Llosa.

Aos poucos, num percurso de muitas idas e vindas, Vargas Llosa se convenceu de que os valores liberais são os únicos a reunir em seu entorno a defesa da economia de mercado, dos direitos humanos, das liberdades individuais, da democracia política e do progresso técnico-científico.

Em vez da promessa por “paraísos terrestres” – a pedra de toque dos movimentos revolucionários do século 20 –, o liberalismo inspira a busca da perfectibilidade por humanos que se sabem imperfeitos.

Vargas Llosa é afetuoso com seus biografados. Exalta seus acertos e enleva a importância de suas obras para a história das ideias e da cultura ocidental.

Mas ele é também um severo crítico dos limites e equívocos de seus parceiros de jornada pelo mundo liberal: aponta, entre outras questões, a lamentável ligação de Hayek com a ditadura de Pinochet, no Chile; a indefensável proposição de Popper a respeito de uma necessária censura televisiva; a exagerada aversão aos intelectuais de Aron; as ingenuidades de Smith no tocante ao poder de autorregulação da “mão invisível”, etc.

Vargas Llosa, em essência, ao resgatar o que considera mais avançado e menos oportuno em seus diletos pensadores, ressalta sua autonomia, sua condição de intelectual do tempo presente, que se inspira em grandes mestres e deles vai bastante além, negando-se a obediências irrefletidas e filiações cegas.

Para José Guilherme Merquior, ser liberal significava jamais se prender a versões fechadas ou controladas da realidade, mantendo a absoluta independência do pensamento, do juízo e da ação.

Já Vargas Llosa, ao trazer seus mestres intelectuais para os leitores de uma época invadida pela mais aguda das desinteligências, propõe uma reflexão concentrada nas potências e nos limites da imaginação liberal, num momento em que as seduções autoritárias tanto se popularizam e colaboram para vulgarizar os debates sobre a condição humana e a vida comum.