Ilhas humanas
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quarta-feira, 09 de dezembro de 2020
Marco A. Rossi
Não sei como está a audiência das estações de rádio. Na verdade, faltam-me informações sobre o hábito de ouvir rádio pelas novas gerações. Imagino que, com tantas opções de internet – de “podcasts” a músicas na modalidade “streaming” –, o velho “dial” ande meio abandonado. Dias atrás li que as rádios têm tido mais ouvintes nos seus sites de internet do que por meio das transmissões em AM ou FM. Os tempos mudaram.
Cresci ouvindo rádio. Durante anos, fui cronista numa estação local. Leio, estudo, escrevo ouvindo rádio. Tenho meu aparelho de som e uso programas de computador pelos quais consigo acessar as rádios do mundo inteiro. E ouço de tudo: músicas, notícias, entrevistas, grandes reportagens etc. Difícil me conceber sem uma sonoridade que embale minhas ideias e realizações. Sou movido a música e tenho trilhas específicas para cada momento da minha vida.
Acredito que a rádio impeça a solidão. Sinto-me, diariamente, dentro dos estúdios, conversando com quem está lá, escolhendo as músicas para botar no ar, planejando a programação em minhas estações favoritas. E não deixo de manter acesa aquela ansiedade a respeito da próxima música a ser tocada.
Na década de 1970, o escritor argentino Julio Cortázar escreveu um roteiro radiofônico intitulado “Adeus, Robinson”. Ele investia muito de suas fichas literárias em curtas peças para encenações em teatro ou programas de rádio. Nessa, em particular, ele conta a história do regresso de Robinson Crusoé e Sexta-Feira à ilha da qual foram resgatados décadas antes. A ilha, esplendorosa, agora é um país, de nome Juan Fernández, com cidades gigantescas, arranha-céus, avenidas largas, centros de lojas, museus, cinemas e tudo o mais. Enquanto, da cabine do avião, Robinson se deslumbra, orgulhoso, Sexta-Feira, um nativo que foi para Londres com seu “salvador”, vê as coisas de outra maneira e tenta advertir seu “amo”.
– Talvez nada tenha mudado – diz, entre sorrisos de canto de boca, Sexta-Feira.
– Você não enxerga o progresso? – pergunta, eufórico, Robinson.
– E aquilo que não podemos ver, senhor, como será? – replica o “bom selvagem”.
Uma vez na ilha, todo cuidado para que Robinson não converse com os habitantes é tomado. Seus passeios são controlados e previamente acertados, o hotel se converte em uma jaula da qual só sai com anuência das autoridades locais. É preciso, a todo custo, impedi-lo de ver que a mudança é só de superfície.
Em diálogo com Sexta-Feira, Robinson vai descobrindo que a solidão que vivera na ilha nunca deixou aquelas terras. Entre bibelôs tecnológicos e enormes edificações, a multidão é que se vê agora em solidão profunda: caminha de um lado para o outro, burocraticamente, trabalhando, comendo, consumindo, voltando para casa e repetindo tudo de novo no dia seguinte. Há, portanto, muitas formas de estar e viver sozinho.
Lições da rádio: talvez os tempos não tenham mudado tanto assim.
PS: Leiam Julio Cortázar e ouçam música.