Ambientes virtuais favorecem animosidades. Aquilo que não se tem coragem de dizer cara a cara é facilmente proferido numa rede social. Uma ilusória proteção oferece falsa coragem a verdadeiros covardes, corrompendo o debate público e privatizando o mundo das ideias.

Imagem ilustrativa da imagem Há uma tela no meio do caminho
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Existe um importante papel das mediações na transmissão da informação e na elaboração do conhecimento. Sem um crivo analítico capaz de separar o fato ocorrido da opinião desmedida, o que chega ao leitor (ouvinte ou telespectador, tanto faz) pode ser uma mistura bastante infeliz de revanchismo, ódio e ideologização absurda da vida. A realidade é transformada em arena, na qual há torcidas, em vez de cidadãos.

“Cidadão, não!”, disse uma senhorita a um fiscal municipal no Rio de Janeiro. Ela preferiu destacar a profissão do companheiro, a opção particular, em vez de assumir e enaltecer sua condição comum. A aversão à cidadania é simultânea ao gosto pelo privilégio. A hipercompetitividade das sociedades capitalistas estabelece o desejável: ser melhor do que os outros, ainda que isso, de fato, raramente se concretize ou seja possível somente por meio da corrosão do caráter.

Na raiz do problema, talvez esteja o excesso de positividade exigida de cada um, o tempo inteiro. É proibido demonstrar sentimentos, admitir fraquezas e expressar desconhecimento. Em vez da negatividade que humaniza indivíduos em eterna construção, o destaque dado é para o universo da motivação, do “você é o empreendedor de si mesmo”, do “você é do tamanho dos seus sonhos”. Não há meritocracia em sociedades que se alimentam da desigualdade, do preconceito, de histórias interrompidas por violência e descaso. No mundo virtual, a realidade é ficção e a ficção, uma realidade de coaches.

A pandemia do coronavírus ampliou as fronteiras do mundo virtual. Com ruas e praças ainda mais esvaziadas, o lugar físico da política se deslocou para o espaço abstrato das conectividades. Política em sentido dilatado, é preciso ressaltar. A educação dos filhos, as trocas amorosas, as visitas familiares, o consumo cultural, as viagens pelo mundo, tudo agora tem uma tela no meio do caminho. Há uma tela no meio do caminho, constataria o grande poeta.

Com “quadradinhos” alocando gente, fones recebendo sons, cliques e conexões nem sempre confiáveis promovendo as aproximações possíveis, a internet é agora o lugar de estudar, namorar, matar saudade. Ao mesmo tempo – e lamentavelmente –, pode se traduzir num terreno de fofocas, conspirações e “cancelamentos”.

Sem que as pessoas sejam diferentes, os meios irão reforçar apenas aquilo que elas têm sido. Não é razoável esperar que o mundo virtual humanize, fortaleça ou mesmo empreste alguma dignidade aos indivíduos. Eles terão à frente de si, em vez de uma tela para o mundo, um espelho feito de vaidade e egoísmo. Tela e pedra se fundem e se põem no caminho, declamaria o bom poeta.

Mas o poeta adverte: as caminhadas sob o sol, os beijos e abraços à luz do luar e os sonhos compartilhados à beira mar logo trarão a humanidade de volta à sua longa aventura em busca de si mesma. Haverá – de novo – uma esperança no meio do caminho.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL