O comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) viveu quase uma década nos cárceres fascistas, antes de morrer, agonizado, num hospital, poucos meses após ser “libertado”. É conhecida a sentença do promotor que lhe pediu a condenação: “Precisamos impedir esse cérebro de pensar por 20 anos”. Quis a história, contudo, que os tempos de prisão fossem altamente fecundos para a cabeça do jovem sardo, cujo crime havia sido a insubordinação ao arbítrio e à barbárie.

Imagem ilustrativa da imagem Gramsci e as crianças
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Além dos 33 “Cadernos do Cárcere”, que contêm traduções e vivas reflexões sobre a política, a cultura, a economia e os diversos contornos da sociabilidade capitalista, Gramsci escreveu muito para amigos e familiares. Reunida em volumes intitulados “Cartas do Cárcere”, a correspondência gramsciana sintetiza um homem e seu tempo, a esperança e a dor, a inteligência e a autonomia, tudo que simbolizou esse italiano meridional de corpo franzino e espírito indestrutível.

Uma das cartas dirigidas à esposa Giulia, no primeiro dia de junho de 1931, traz uma antiga fábula de Ales, pequena comunidade em que Gramsci nasceu. Ele pede à companheira que a conte aos filhos e, quando possível, retorne com a descrição da reação das crianças. A história revela a sensibilidade daqueles que criam a partir de conexões profundas entre a fantasia e a realidade, entre as partes e o todo, entre o presente e o futuro.

“O rato e a montanha”, obra infantil que oferece dramaturgia à carta de Gramsci, ilustrada por Laia Domenèch e editada pelo selo Boitatá, chega ao Brasil para encantar adultos e crianças, conduzindo-os pela beleza narrativa daquele sujeito que dedicou a vida, mesmo em seus momentos mais tenebrosos, a fazer deste mundo um bom lugar.

Tudo começa quando um ratinho, aproveitando o sono tranquilo de uma criança, bebe o leite da caneca que lhe está perto. Ao despertar, a criança, com fome, chora por não ter leite. A mãe da criança, desesperada, chora também. Não há alimento algum. O rato, arrependido, sai em busca de leite para a criança. Os tempos são de carestia social, com o peso da guerra ainda sobre os ombros dos pobres trabalhadores da Sardenha.

Diante de uma cabra, o rato lhe implora leite. A cabra diz que daria todo o leite do mundo, mas, por não ter grama para comer, não consegue produzi-lo. O rato, então, entristecido por constatar a secura do pasto, corre até uma fonte, para implorar por água. A fonte, destruída, não tem como levar a água até o pasto – precisaria de reformas. O rato procura um pedreiro, que garante consertar a fonte, desde que lhe sejam dadas pedras, muitas pedras. Chegando à montanha, onde jurava encontrar tudo de que precisa, o rato fica chocado com a devastação. Especuladores gananciosos haviam arrancado tudo que podiam das estepes e dos planaltos. Tudo eram só “entranhas” – ossos retirados da terra –, um cenário de desolação.

O rato conta seu drama às montanhas e a elas promete que, quando crescer, o garoto irá replantar as árvores, devolvendo à natureza seu ciclo de chuvas e reprodução saudável. Ele, o rato, irá ensiná-lo a preservar a vida no planeta, com inteligência e amor. A montanha, então, lhe dá as pedras de que dispõe, e as promessas anteriores se cumprem: a fonte é restaurada, a água devolve o verde ao pasto, a cabra produz leite abundantemente. Por fim, tudo volta a prosperar. A criança cresce e se dedica à formação de seres humanos mais sensíveis, desafeitos a destruir para lucrar.

Gramsci foi um pensador insuperável, talvez por ter sido, antes de tudo, um ser humano grandioso e ímpar. Leituras atentas e sérias de seus escritos – tanto aqueles redigidos em sua dedicada tarefa jornalística quanto os presentes nos cadernos que sobreviveram ao ódio fascista – costumam encontrar fontes valiosas para pensar a realidade contemporânea e os enormes desafios que se impõem aos cidadãos do mundo. Com o brilho de quem amava as crianças, o universo escolar e as artes que instruem sentidos e movimentos humanos, Antonio Gramsci deixou narrativas como “O rato e a montanha”, para que pais e educadores do presente olhem para trás com o destemor de quem sabe ser urgente caminhar para frente.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]