Fome
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 20 de outubro de 2021
Marco A. Rossi
A pobreza tem mil faces. Ela pode ser sentida na carne ou no espírito. Quando se trata de uma questão social vasta e abrangente, a pobreza diz muito sobre que tipo de sociedade se tem, se constrói, se deixa como herança. Conviver com a pobreza – sem que isso resvale em indignação – vem sendo o grande desafio dos últimos anos no Brasil.
Em cada esquina, ao farol, há sempre alguém com uma placa em que se lê “fome”. De dentro do carro, penso como isso ainda é possível. Num mundo que produz toneladas de alimentos diariamente, em países que se gabam de ocupar tal ou qual posição nos rankings internacionais de prosperidade e crescimento econômico, a fome deveria ser inaceitável. Como carência alimentar ou subnutrição, deveria ser proibida. Todo país, para figurar na agenda das relações internacionais, teria, antes de tudo, de eliminar a fome de seu mapa.
A fome como fenômeno social é resultado da indiferença. Cidadãos e autoridades pensam poder combatê-la apenas com caridade, com distribuição de alimentos. O tipo de fome que mutirões podem resolver é daquele que volta no dia seguinte, mais agudo e desumano. A caridade é um ato de generosidade e deve ser estimulada. Ao mesmo tempo, entretanto, é preciso dizer que ela não basta para enredar grandes transformações. Só a organização política da sociedade, pautada em direitos e deveres (e boas pitadas de utopia), pode superar a fome, retirá-la do mapa. Para isso, há muito o que fazer ainda.
Nos faróis das esquinas – estrategicamente onde há grande circulação de veículos – erradicar a placa em que se lê “fome” deveria ser prioridade política. Isso, contudo, só ocorrerá quando seus portadores forem vistos como gente. Em geral, eles são aquele “outro” que ignoramos: o negro, o indígena ou o estrangeiro. A fome, em maior ou menor grau, é filha do preconceito.
Certo ar de superioridade existe em quem passa pela “fome” e finge não a ver. Um sentimento típico de uma sociedade colonizada ao longo da história, na qual se sentem melhores e mais aptos aqueles que obtiveram privilégios. No Brasil, país de elites patriarcais e brancas, o sentido da cultura é ditado por pequenas parcelas endinheiradas, por um moralismo que não ultrapassou o século 16. Entre “religiosos” (que creem num Cristo para milionários) e insensíveis, a fome tende a resplandecer.
Soma-se à indiferença a crescente individualização nas sociedades contemporâneas. No Brasil, o individualismo se encarrega de dizer que a fome é um problema de quem tem fome.
Quem não tem fome não tem nada a ver com isso. Assim como trambiques e maracutaias que enriquecem e conferem status resultam do “mérito”, a fome é resultado de um desvio de caráter, de gente que não quer saber de trabalhar e ganhar a vida. Por mais absurdas que sejam essas insinuações, elas são triviais no cotidiano, do papo de bar aos almoços em família.
As placas dizem mais: desemprego, despejo, abandono...A fome é só o arremedo final, a palavra que deveria nos fazer ver como tudo está tão errado.
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