A pobreza tem mil faces. Ela pode ser sentida na carne ou no espírito. Quando se trata de uma questão social vasta e abrangente, a pobreza diz muito sobre que tipo de sociedade se tem, se constrói, se deixa como herança. Conviver com a pobreza – sem que isso resvale em indignação – vem sendo o grande desafio dos últimos anos no Brasil.

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Em cada esquina, ao farol, há sempre alguém com uma placa em que se lê “fome”. De dentro do carro, penso como isso ainda é possível. Num mundo que produz toneladas de alimentos diariamente, em países que se gabam de ocupar tal ou qual posição nos rankings internacionais de prosperidade e crescimento econômico, a fome deveria ser inaceitável. Como carência alimentar ou subnutrição, deveria ser proibida. Todo país, para figurar na agenda das relações internacionais, teria, antes de tudo, de eliminar a fome de seu mapa.

A fome como fenômeno social é resultado da indiferença. Cidadãos e autoridades pensam poder combatê-la apenas com caridade, com distribuição de alimentos. O tipo de fome que mutirões podem resolver é daquele que volta no dia seguinte, mais agudo e desumano. A caridade é um ato de generosidade e deve ser estimulada. Ao mesmo tempo, entretanto, é preciso dizer que ela não basta para enredar grandes transformações. Só a organização política da sociedade, pautada em direitos e deveres (e boas pitadas de utopia), pode superar a fome, retirá-la do mapa. Para isso, há muito o que fazer ainda.

Nos faróis das esquinas – estrategicamente onde há grande circulação de veículos – erradicar a placa em que se lê “fome” deveria ser prioridade política. Isso, contudo, só ocorrerá quando seus portadores forem vistos como gente. Em geral, eles são aquele “outro” que ignoramos: o negro, o indígena ou o estrangeiro. A fome, em maior ou menor grau, é filha do preconceito.

Certo ar de superioridade existe em quem passa pela “fome” e finge não a ver. Um sentimento típico de uma sociedade colonizada ao longo da história, na qual se sentem melhores e mais aptos aqueles que obtiveram privilégios. No Brasil, país de elites patriarcais e brancas, o sentido da cultura é ditado por pequenas parcelas endinheiradas, por um moralismo que não ultrapassou o século 16. Entre “religiosos” (que creem num Cristo para milionários) e insensíveis, a fome tende a resplandecer.

Soma-se à indiferença a crescente individualização nas sociedades contemporâneas. No Brasil, o individualismo se encarrega de dizer que a fome é um problema de quem tem fome.

Quem não tem fome não tem nada a ver com isso. Assim como trambiques e maracutaias que enriquecem e conferem status resultam do “mérito”, a fome é resultado de um desvio de caráter, de gente que não quer saber de trabalhar e ganhar a vida. Por mais absurdas que sejam essas insinuações, elas são triviais no cotidiano, do papo de bar aos almoços em família.

As placas dizem mais: desemprego, despejo, abandono...A fome é só o arremedo final, a palavra que deveria nos fazer ver como tudo está tão errado.

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