Férias, para mim, sempre tiveram um duplo significado: viagem com a família e redução da pilha de livros, que cresce ao longo do ano, à espera de leitura. Neste início de 2021, não houve viagem. Não consegui imaginar voos com máscaras, cafés da manhã com protocolos de prevenção contra o coronavírus, passeios e visitações repletos de regras de distanciamento – e ainda o medo de tudo e todos. Fiquei em casa, lendo tudo que pude, torcendo para que a ficção me aliviasse da realidade.

Há um percalço nas boas leituras. Elas nos remetem a outros livros, forçando releituras e consultas a obras já conhecidas, guardadas na estante ou na memória. Assim, o tempo dedicado a um ensaio ou romance é sempre maior do que o previsto. Gosto de sorver cada pedaço da história, infiltrando-me na narrativa, ocupando os cenários descritos, conversando com as personagens. Não admiro aqueles que fazem leituras apressadas e atropelam parágrafos, deixando escapar detalhes que podem mudar toda uma forma de ver a vida e sentir o mundo. Vivo casos de amor com os livros que leio, nutrindo a expectativa de que sejam paixões duradouras.

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. | Foto: Divulgação

“Torto arado”, escrito pelo baiano Itamar Vieira Junior e vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura em 2020, foi o livro que mais me impactou nestas férias. Bem depois de concluída a leitura, o romance permanecia em mim, tomado que fui pelo lirismo de dor e fúria que a história exala.

A paisagem é a do sertão baiano, onde famílias descendentes de escravos trabalham sobre solo alheio, enriquecendo proprietários indiferentes à situação de (quase) escravidão em que mantêm dezenas de famílias. O livro gira em torno das irmãs Bibiana e Belonísia, marcadas por um acidente na infância. Cada momento é visto como único na constituição das personagens, atravessadas por injustiças e redenções. Na descrição de um jantar sendo preparado com azeite de dendê ou na euforia de produzir a imagem fidedigna das festas religiosas, o livro cativa e prende a atenção, convidando o leitor a percorrer um Brasil esquecido, habitado por gentes invisíveis.

O tom da escrita é poético. Não obstante a ruína de uma tragédia insistente no país, a da luta pela terra, “Torto arado” penetra o interior das personagens, respirando com elas, ouvindo o som que produzem olhares, abraços, encontros e despedidas. É como se as casas de barro dos moradores de Água Negra, latifúndio que é o mundo inteiro, se abrissem ao leitor na passagem das páginas. Diferentemente dos “reality shows” da TV, entretanto, a vida em Água Negra não contém encenações nem se faz para conquistar audiência. O “torto” da terra é um tempo específico, cravado no espírito de quem habita um chão que parece ser de ninguém, um ninguém capaz dos mais atrozes atos de intimidação e violência. O “arado” é a materialização de toda sensibilidade, união e esperança.

A sentença que encerra o livro – “Sobre a terra há de viver sempre o mais forte” – expressa a ambiguidade da palavra “força”. Pode ser tanto a coragem de quem luta por novos tempos quanto a expressão de covardia de quem açoita a vida humana. A escolha fica, sem dúvida, para o leitor.