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Os bons dicionários da língua italiana dão registro ao adjetivo “felliniano”, que diz respeito direto à obra de Federico Fellini (1920–1993), cineasta responsável por algumas das melhores obras-primas da sétima arte.

“Felliniano” é um atributo ético e estético de mundo que implica tensões e ambivalências. É como se todas as características humanas andassem sobre uma corda bamba, tentando equilibrar ideias díspares como província e metrópole, paganismo e cristianismo, hedonismo e consciência moral, cultura popular e belas artes, tradição e vanguarda.

No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o adjetivo também aparece e pressupõe um trabalho “ao estilo de Fellini”. Ou seja: uma vida interiorana em busca de realização na modernidade cosmopolita, carregando no peito um amor invencível pelas formas mais vivas das muitas expressões populares, pela força da imaginação, pelo confronto entre o real, o peso da moral religiosa e as seduções materiais.

Alguns filmes de Fellini são imperdíveis, como “Abismo de um sonho” (1952), “Amores na cidade” (1953), “Amarcord” (1973), “E la nave va” (1983) e o meu favorito, “A doce vida” (1960). Em todos eles, evoca-se o exuberante e o grotesco, os exageros da linguagem, os delírios mais humanos das personagens. Num filme de Fellini, tudo se passa como se vestido num bom surrealismo prêt-à-porter.

O adjetivo “felliniano” empresta cor e forma aos espíritos que não aceitam respostas simples para problemas complexos. É impossível travar um debate com um bom sujeito “felliniano” às margens turvas das redes sociais, nas quais o breve, o falso e o exibido sobressaem. “Fellinianos” são os livros que nos inquietam, os filmes que demonstram a grandeza da vida, as músicas que bailam em nossa alma. “Fellinianas”, enfim, são as amizades que atravessam o tempo e suas intempéries.

Os indivíduos que entrecruzam a vida singular e a existência universal são essencialmente “fellinianos”, uma vez que sabem ser o isolamento uma enorme perda de tempo: é na comunhão que surgem as maiores lutas da vida – e nelas, nas lutas, é que são encontradas as respostas mais interessantes aos problemas mais relevantes.

Todos os dias somos bombardeados com informações que nos chegam de toda parte. Algum tipo de instinto, que merece profundos estudos, logo exige que tenhamos uma opinião sobre os fatos narrados. Pior: que consideremos as narrativas como fatos, e não como meras interpretações apressadas da realidade, servindo a interesses bastante exclusivistas.

O bom espírito “felliniano” duvida de tudo que seja humano e se ampara em tensões que o carreguem de 8 a 80, para, bem depois, fazer as escolhas mais ponderadas e, ao mesmo tempo, fulgurantes. Que bom seria viver num mundo capaz de reproduzir em larga escala os espíritos “fellinianos” da vida.

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