O médico fala de um exame que começa com “angio”. Ele está em busca de veias e caminhos. Quer saber como estão se dando coração e cérebro e se há alguma pendenga mais grave entre eles. A retórica é interessante, dotada de argumentação irrefutável (a linguagem especializada oprime o mundo dos vivos e dos mortos). Desde o início, os exames foram considerados cumprimento de um encargo: hipóteses, ainda que improváveis, não devem ser ignoradas. Assim, de papéis em mãos, lá fui eu.

Imagem ilustrativa da imagem Entre a cabeça e o coração
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Um tubo de ressonância magnética não é um lugar de entretenimento. As sensações incontornáveis de falta de ar e derretimento cerebral se misturam. É preciso ter muito autocontrole para suportar 30 minutos dentro de um cilindro apertado e intimidante, cujos diferentes ruídos levam a crer que algo está para desaparecer a qualquer momento.

Os ruídos, aliás, são um caso à parte: ora parecem apitos, ora implosões; ora se assemelham a batuques, ora a desintegrações espaciais. Quando tudo parece estar no fim, uma nova rodada barulhenta de sinais lembra que a brincadeira ainda vai longe. Lá dentro, pensando no que fiz, no que faço e no que ainda pretendo fazer, estava eu, esperançoso. Duas esperanças: 1) apesar das evidências contrárias, eu sairia ileso do tubo e 2) o resultado final traria boas novas – muito roçado pela frente ainda haveria.

Enquanto o exame prosseguia, em meio a “sinos”, “tambores” e “britadeiras”, eu mantinha olhos fechados e devaneios distantes. As coisas que aprecio estavam pertinho de mim: o mar, o rock, as pessoas amadas de ontem e de hoje. Resgatei na memória passeios de mãos dadas, sorrisos espontâneos, umas 5 ou 6 canções dos Beatles e do Rod Stewart. Cantarolei – só com a ideia, uma vez que não podia mexer um músculo – “Galho Seco”, do Zé Geraldo. Afinal, algo, no interior de mim, “alumiava”.

icon-aspas É impressionante como situações-limite banham a alma de humildade, exigindo impiedosas autocríticas

A ressonância é momento oportuno para avaliar trajetórias. Perguntei-me se era boa pessoa, se havia praticado o bem, se as escolhas feitas deveriam me orgulhar. É impressionante como situações-limite banham a alma de humildade, exigindo impiedosas autocríticas. Obtive algumas respostas incisivas: tornar-me-ia sociólogo outra vez, se preciso; ergueria as bandeiras que me apontam o caminho a seguir, de novo; faria tudo pelo meu filho e acreditaria no amor, incondicionalmente. No incômodo tubo, havia folga para que eu acreditasse num saldo positivo da vida. Dediquei-me a grandes paixões, à busca pelo rigor analítico, pela serenidade das atitudes. Sempre mantive a cabeça no lugar, mesmo sob tempestades e ofensivas covardes. Mas, agora, diante de um tempo futuro menor do que o passado vivido, quero estar ao lado de quem possa me ensinar um pouco mais sobre amor e revolução. Outra coisa atestaria que não aprendi muito com a história.

Aliviado, saí do tubo disposto a sonhar com beijos e abraços, cafunés e inspirações radicais de esperança. A vida, inusitada por excelência, é frágil, mas pode ser bela. Voltei para casa assobiando “Alive”, do Pearl Jam.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]