Eles, nada gatos, já nasceram pobres

Já é parte do melhor da vida brasileira o momento em que o jurista e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Souza Junior, explica a uma deputada bolsonarista, durante reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a impossibilidade de existir um diálogo profícuo entre eles.

A questão, destacou o professor, era de cosmovisão. A deputada só poderia enxergar aquilo que seu processo cognitivo permitisse, uma vez que as crenças dela em relação ao fenômeno investigado possuíam certezas indeléveis. De certa maneira, a realidade já estaria inscrita na cognição da jovem deputada. Ela não seria capaz de ver o mundo inteiro, mas tão somente a parte que sua cabeça havia recortado. Se ele lhe dissesse alguma coisa que confrontasse essa percepção estabelecida da realidade, seria logo rechaçada. Daí a inviabilidade de um diálogo frutífero.

A parlamentar de extrema direita, atordoada, acusou o professor de tê-la ofendido, de “tirar onda” da CPI numa linguagem com “estilo acadêmico”. A cena virou um amontoado de memes de internet e revelou, sem deixar margem para muitas dúvidas, a falência cognitiva do viés da vida política a que pertence a representante do povo catarinense.

Antes de mais nada, é preciso que se diga: a fala de José Geraldo de Souza Junior veste todas as carapuças do mundo. Todos recortamos a realidade e percebemos só uma ínfima parte da vida. Como ensinou o filósofo húngaro György Lukács, o fenômeno objetivo é muito maior que a disposição subjetiva de compreendê-lo – a complexidade da vida é inesgotável e não se encerra em nenhuma explicação.

Nesse sentido, não houve ofensa nem tiração de sarro por parte do jurista convidado pela CPI. Houve, sim, a lembrança de que algumas cosmopercepções podem ser mais abrangentes do que outras. Na hora de recortar a realidade, entra em campo todo um percurso de historicização, como recordou o professor. De que lado estamos? Que princípios nos orientam? Quais valores cultivamos? O que devoramos em termos éticos e estéticos? A resposta a essas indagações diz muito sobre o “tamanho” de nossas visões de mundo.

A pedido de uma colega de profissão, pesquisadora das novas direitas no Brasil, percorri perfis de conservadores, reacionários e bolsonaristas locais e nacionais nas redes sociais. A imagem que de lá avança sobre qualquer observador é apavorante: apologia às armas, negacionismo científico, mentiras, má-fé, defesa de toda sorte de preconceitos e práticas abertas de intolerância e comovente estultice. A chave estética salta aos olhos: raramente se indica ou analisa uma peça de cultura; quando isso ocorre, é para acusá-la de “comunista”, “depravada”, “esquerdista”, essas bobagens. A pobreza de espírito é acachapante.

Hora dessas, retorno aqui para esmiuçar o que “pensam” sobre o italiano Antonio Gramsci, cuja obra eu estudo há mais de vinte anos. Por ora, basta afirmar que essa gente não consegue ultrapassar sua indelicada estreiteza cognitiva. Uma paisagem infernal.