É mundialmente conhecida a aventura de Robinson Crusoé, o marinheiro inglês que naufragou no Caribe e viveu numa ilha por quase três décadas. O personagem foi criado por Daniel Defoe e inspirado num infortúnio real. O livro de Defoe, lançado em 1719, superou a realidade em prestígio e faz parte de quase todas as listas de obras essenciais ao processo de humanização e formação do caráter.

Crusoé é a encarnação do espírito burguês, da autoconfiança que surgia para defender a soberania individual, promover o trabalho como fonte de toda riqueza e, principalmente, tecer elegias ao novíssimo perfil criativo do ser humano, mesmo quando imerso em situações desesperadoras.

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É vasta a crítica literária sobre Robinson Crusoé, assim como são muitas as adaptações da história para o cinema e infinitas peças de arte e entretenimento. Crusoé e Sexta-feira – o “selvagem” caribenho “civilizado” pelo burguês das ilhas britânicas – já foram retratados em verso e prosa; de muitas maneiras, durante os últimos trezentos anos, habitam imaginários, estimulam narrativas fascinantes, fortalecem a autoestima de indivíduos acuados diante dos desafios da vida.

Existem dramas históricos conflitantes e reflexões filosóficas argutas em Robinson Crusoé. Trata-se de uma obra que reflete um período de grande entusiasmo pelo ideário liberal, com sua ênfase na autossuficiência de indivíduos “empreendedores de si”. Mas, no livro, também surge a disposição para compreender o gênero humano a que pertencem os seres isolados. A certa altura, por exemplo, Crusoé assevera: “Todos os males devem ser considerados com o bem que neles existe e com o pior que os assiste”.

O espírito do tempo contrariado por Robinson Crusoé torna valiosa essa sentença. A realidade ainda se escorava em ideias prontas de verdade e mentira. A noção de construção permanente da vida era estranha aos tipos humanos mais comuns. Viver não podia ser nada difícil: um deus ou um rei saberia o que dizer a quem, porventura, titubeasse.

De repente, ilhado e amedrontado, Crusoé descobre a dialética. O bem está no mal e o mal, no bem. Há anjos demoníacos e demônios angelicais. Perspectivas, valores, percursos, tudo pode erigir uma realidade bem menos óbvia.

Crusoé nos coloca diante dos arrependidos que juram ter encontrado a verdade numa revelação espontânea. E nos incita a dizer-lhes: “Caiam fora!”

Não há verdades que se sobreponham a mentiras, haja vista a verdade de hoje ser, ontem ou amanhã, uma enorme mentira em algum lugar, para muita gente. Além disso, em seu próprio movimento constitutivo, a verdade se faz sobre amontoados de mentiras – e a envergonhada mentira pode anunciar verdades desestabilizadoras.

Quando alguém diz que já foi e não é mais, talvez nada nunca tenha sido. Um Crusoé arrependido não seria capaz de ver o bem e o mal que em tudo e todos reside, convertendo-se, pois, em mera sombra de um corpo estranho e indecifrável.

A soberba é inimiga da dialética. Náufragos contam com humildade a história de sua solidão.