O ano está chegando ao final. A sensação que tenho é a de que 2020 e 2021 foram a mesma coisa dividida em duas partes. A pandemia e as incertezas quanto ao futuro marcaram cada dia desse longo período. Oscilando entre momentos de euforia e mal-estar, chego aqui consciente de que precisamos rever o que, culturalmente, temos consumido.

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. | Foto: iStock

Não vou fazer listinhas de livros, álbuns musicais ou filmes que, na minha opinião, se destacaram neste ano. Elas até existem, mas vou deixar que cada um tente elaborar as próprias relações de favoritos. Em vez de incentivar a ver isto ou aquilo, vou promover algo mais abrangente: vou pedir que leiam livros, ouçam música, vejam filmes. O contato com a produção cultural de todos os tempos nos ajuda no difícil processo de sensibilização num mundo que nos quer rudes e intragáveis, egoístas e competitivos.

Na arte há um conhecimento que escapa à frieza dos cálculos e ao pragmatismo cotidiano. Trata-se de um saber, como dito, sensível, orientado por valores, que atiçam nosso olhar sobre o mundo, exigindo da vida que ela seja bem melhor. Num livro interessantíssimo – “Os sofrimentos do homem burguês” –, o filósofo Leandro Konder atenta para o fato de que os valores de um conhecimento sensível não são os únicos que se manifestam nas artes: “As atividades artísticas expressam também outros valores. Podem, por exemplo, corresponder a necessidades psicológicas que se exteriorizam de maneira lúdica. Podem desempenhar um papel terapêutico. Podem proporcionar um tipo de satisfação que se obtém através da excelência técnica, a alegria do ‘fazer bem feito’”.

As artes – expressão de uma determinada vida cultural – auxiliam na formação do caráter. Nesse sentido, a arte diz muito sobre o que somos. Uma simples música, por exemplo, tem sua história, pertence a um álbum específico, foi composta numa época precisa, relata trajetórias humanas que se cruzam no tempo e no espaço. A letra de uma canção, assim, é mais do que uma mera peça de entretenimento; é a expressão de um conhecimento sensível que pode ajudar na hora de experimentar certas exigências da vida.

Uma chave de compreensão do mundo à nossa volta é a literatura. Um autor de livros é um sujeito imerso em seu tempo, curioso, angustiado diante de certos padrões de convivência. Ao mesmo tempo, ele é um indivíduo como todos os outros, que sonha, ama, se arrepende, chora ou mesmo tem vontade de começar tudo de novo inúmeras vezes. Por meio da arte, esse sujeito comum se lança ao gênero humano, fala a outros corações, interpreta a história,

alia-se a personagens, dando-lhes uma quase existência. Quem nunca leu um bom romance e se sentiu dentro da narrativa? A arte faz isto: mobiliza corpos em mentes.

A realização artística equilibra razão e emoção, dá balizas ao conhecimento científico e o humaniza. Se fôssemos só resultado da ciência, seríamos excessivamente técnicos e insuportáveis. Graças à poesia das artes, somos seres também sensíveis, capazes de suportar o mundo e, no limite, transformá-lo.

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A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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A partir desta edição, o colunista Marco A. Rossi estará em férias devendo retornar em fevereiro de 2022.