O paradoxo rege a história. Atitudes descabidas ganham sentido em contextos imprevisíveis. Quem poderia imaginar que, numa época de expansão dos domínios científicos, a humanidade teria de se isolar para conter a destrutividade de um vírus? Ao mesmo tempo, quem é capaz de supor que existam pessoas que contrariam a ciência e apostam nas exigências desumanas do vil metal? Em meio à quarentena – necessária para impedir o colapso dos sistemas de saúde e a corrosão das redes de sociabilidade –, insanos em defesa dos “negócios” gravam vídeos em suas casas, longe de todos, para declarar que tudo deve voltar ao “normal”.

Imagem ilustrativa da imagem Como será a primavera?
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Não devemos desejar o retorno à normalidade. Foi a vida “normal” que nos trouxe a este delicado instante. A hipercompetitividade generalizada, a indiferença pelo outro, o desprezo pela natureza, a idolatria pelos objetos de consumo, a corrida pelo status, a sanha do poder, o hedonismo inumano, tudo cria e fortalece o paradoxo dos paradoxos: para nos tornarmos humanos teremos de admitir à desumanização, escapar-lhe às agruras, para alcançar uma nova ideia de civilização.

Já sem abraços, beijos e cafunés, temos tempo para pensar naquilo que estávamos nos tornando antes da primeira noite do medo. O que estávamos fazendo com as nossas vidas? O que nos orientava e inspirava? Para além do dinheiro e das formas de tê-lo em maior quantidade, com o que sonhávamos? É de imaginar que, após longo outono e solitário inverno, a primavera nos apresente à nossa perdida imagem invertida – aquela que escondia de nós mesmos o que poderíamos ter sido, caso tivéssemos negado essa atual versão tão apequenada, egoísta, ignorante...

É possível que, isolados e assustados, busquemos a grandeza num livro que não lemos por preguiça ou falta de tempo. É também de supor que existirá disposição para pensar a vastidão do mundo, seus recantos, mares, belezas – um mapa-múndi se fixará em nossa memória, permitindo viagens diárias pela Terra que abandonamos por causa do microuniverso de nossas particularidades mais hostis. Nossa imaginação dará um salto de qualidade: criaremos novas histórias, nas quais mocinhos não existem, bandidos não se lhe opõem, tudo vive junto e misturado, no insuperável elemento contraditório da vida. Seremos, com a chegada das flores, menos binários, mais complexos, vulneráveis à felicidade. E poderemos declamar as poesias que ignorávamos por total insensibilidade.

Que a quarentena nos ensine a dançar sozinhos, sonhando com a canção perdida, o amor nunca vivido. Que o tempo de sobra estimule alguns acordes no velho violão encostado a uma parede da casa. Na próxima primavera, assim, poderemos compor e tocar com os amigos; deveremos antecipar aquele convite à pessoa amada para jantar, bailar com os rostos colados. Se nada mais houver, o ser humano terá regressado, exausto, após séculos de uma longa viagem por outras e distantes realidades.

Quase tudo está em jogo neste paradoxo: o outono das angústias e o inverno do horror (estações aliadas da economia do capital) ou a primavera da esperança e o verão das grandes paixões (o tempo do despertar humano). A escolha feita definirá o que o futuro entenderá por “civilização”.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]