Quando li pela primeira vez “Discurso sobre o colonialismo”, do martinicano Aimé Césaire, logo pensei em escrever sobre ele. Trata-se de um livro que mexe com o leitor e nele deixa marcas profundas. É impossível sair ileso da leitura: tudo é chacoalhado, desde as antigas impressões sobre a ideia de “civilização” até as práticas cotidianas de escolher palavras e gestos para ocupar um lugar no mundo.

Logo de início, a obra diz a que veio. Afirma que uma “civilização” incapaz de lidar com os problemas que gera e alimenta é decadente; que uma “civilização que fecha os olhos para suas questões fundamentais é doente; que uma “civilização” que atropela seus princípios é moribunda. Mais abaixo, deixa o incômodo ponto de partida para uma necessária reflexão: “A Europa é indefensável”.

Acostumamo-nos a imaginar o Velho Mundo como um lugar cheio de belas histórias, cidades e paisagens. Do mesmo modo, entronizamos o europeu como o desbravador do planeta. Essa imagem idílica encoberta a perversidade da colonização, a mesquinharia das batalhas por chão e riqueza, as fratricidas disputas territoriais dentro do continente, a desumanização do outro via tráfico de escravos, a criação de uma realidade deformada a partir da imposição de deuses e mitos criacionistas. Olhando bem, Césaire é cirúrgico: é mesmo impossível defender a Europa.

Diante da beleza do mundo dos brancos, do lugar de onde vieram nossos idealizados antepassados, práticas como a do ódio racial são escanteadas. Por que, afinal de contas, falar disso? O racismo, bem como tantos outros tipos de preconceito e exclusão, não é um problema dos outros? O que temos nós, que julgamos ser puros e inocentes, com isso? Não é melhor viver em paz e deixar esses temas bicudos a quem por eles se interessa? Essas indagações são costumeiras, não obstante nunca tenham coragem de se revelar.

O caso do atleta Vini Jr., nos gramados espanhóis, escancara o “racismo recreativo” de nosso dia a dia. Contamos piadas que inferiorizam negros, indígenas, mulheres, gays e estrangeiros a toda hora, em almoços de domingo e nos intervalos do trabalho. Rimos da história trágica dos outros, minimizando sofrimento ancestral, potencializando uma violência que não tem fim. Só há “racismo recreativo” onde, antes, ele é institucional, ou seja, compõe imaginário e ordenamento das mais íntimas relações humanas, das mais abertas relações sociais. No fim, ele se estrutura como parte de nós, um pedaço nefasto daquilo que nos torna inviáveis. Assim, rir deixa de ser remédio e se converte em sinal de que muita coisa errada nos acomete e a tudo ignoramos.

O racismo habita nossas entranhas e se dissimula na falsa ideia de que somos “todos iguais perante Deus”. Uma igualdade meramente alusiva, pela qual não movemos um dedo, acreditando que as coisas são como são – e ponto final. Essa crença na naturalização de nossas ações nos afoga no conservadorismo, na ideia de que a Europa e nós todos somos lindos – e outro ponto final.

No verdadeiro fim, odientos e ignorantes, somos nós os indefensáveis.

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