Foi-se o tempo em que um regime autoritário só se instaurava pela força das baionetas. Não é mais necessário que haja tanques e fuzis nas ruas para garantir governos belicosos e contrários às conquistas populares. É possível agir à espreita, fingindo absoluta normalidade e, ao mesmo tempo, atacar as colunas que mantêm de pé, ainda que de modo inconsistente, o que resta de vida democrática numa determinada sociedade.

Imagem ilustrativa da imagem Autoritarismo furtivo
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O líder, tal qual se conheceu na primeira metade do século 20, pode até carregar traços nitidamente fascistas, como cavalgar em meio à multidão, insuflar invasões de escolas e hospitais ou debochar da opinião pública ao “beber leite” (gesto simbólico de supremacistas brancos) em transmissões on-line feitas diretamente de bunkers. É também possível decretar a morte lenta de fundações culturais, universidades e instituições de pesquisa científica, tudo para sentir o gozo de receber de seus seguidores mais hostis e fanáticos o epíteto de super-herói.

Nada disso, contudo, define o autoritarismo contemporâneo. Neste momento de crise sanitária, derrocada da economia da desordem capitalista e corrosão do caráter neoliberal de bilhões de indivíduos em todo o mundo, torna-se urgente indagar: “Que tipo de poder é esse que se diz tão normal e, na verdade, apaga memórias e tortura os espíritos críticos?”

O cientista político polonês Adam Przeworski, no livro “Crises da Democracia”, lançado há pouco no Brasil, chama de “autoritarismo furtivo” o processo que tem renovado o oportunismo populista e atuado para desmontar as instituições democráticas no quadro da política internacional. Por trás de uma fachada “civilizada” e de ações de desrespeito sutil às cartas constitucionais, a flama do fascismo ainda crepita.

Przeworski destaca três elementos dessa crise aguda da política global e dos estados nacionais. O primeiro é a constatação de que o processo se dá por um deslocamento pouco espesso da democracia para o autoritarismo. Ancorado em notícias falsas e desinformação escandalosa, o autoritarismo vai sendo incrementado, alargando os poderes do Executivo e minando a credibilidade dos meios de comunicação, dos formadores de opinião, da justiça e do parlamento.

E assim se elabora o segundo elemento: adotando uma postura nitidamente bonapartista, o Executivo se apoia em brechas legais para ampliar suas prerrogativas mais autoritárias, tudo “dentro da lei”, o que reduz a criticidade, por exemplo, de legalistas, militares e até veículos de imprensa.

O terceiro elemento coroa a tragédia. Os líderes dessa agonia democrática são eleitos, escolhidos pelo voto presumivelmente livre da maioria da população. Em países com forte herança autoritária – como o Brasil, por exemplo –, isso reforça a ideia de que é “o povo que está no comando”, culpando os demais poderes pela ineficiência do Executivo, que quer muito, mas não consegue governar. O golpe, então, surge no horizonte, seja em origem, seja em desdobramento.

Oposições fracas e fragmentadas, um imaginário autoritário disseminado pela sociedade e um abismo civilizatório profundo, adornado por desigualdade e violência, suportam esse caráter furtivo do autoritarismo contemporâneo, que segue sem deter o mais letal dos vírus: o fascismo que há em cada organismo vivo talhado pelo ódio ao outro.