De todas as coisas que criara, a única da qual jamais se arrependeu foi o livre arbítrio. Convencia-se a cada pôr do sol de que seus filhos não teriam sobrevivido nem um século se não pudessem fazer escolhas. Lamentava, contudo, que a maior parte das decisões daquilo a que chamavam humanidade tenha sido temerária. De déspotas das multidões até tiranos do próprio espírito, sua criação se despedaçava em egoísmo, insensibilidade e eleição das mais equivocadas prioridades. Cansava-lhe observar o mundo.

Imagem ilustrativa da imagem As férias de Deus
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Optou, então, por fazer algumas mudanças. É claro que foi cuidadoso: a onisciência lhe garantia imunidade contra disfunções psíquicas – para todos os efeitos, não queria padecer na solidão ou em doloroso arrependimento. Assim, abriu mão da onipresença e da onipotência. No estágio em que se encontrava o mundo dos filhos, estar em toda parte só lhe trazia aborrecimentos. Da mesma maneira, passou a permitir outras devoções; afinal de contas, cada um já tinha seu próprio Deus e fazia o que queria em nome dele.

Alguns deuses eram seus concorrentes havia muito tempo. Por razões que os céus desconhecem, sua prole criava líderes, dogmas duros, marchas, tudo que julgava necessário para se impor contra aqueles que eram diferentes. Os deuses agiam como demônios, mas seus cultuadores insistiam na ilusão de salvação. Diante das vestes dos deuses mais truculentos e dissimulados – obtidas nos recalques do fascismo –, seus anjos caídos não lhe inspiravam mais temor. O rebelde Lúcifer era um esgrimista amador quando comparado aos filhos de carne e osso (e nenhuma alma).

icon-aspas “Aliás, a nova humanidade adorava fardas e palavras de ordem. Havia um fetiche quase generalizado pela obediência cega. Ou oito, ou oitenta”

Dispostos a renunciar ao pensamento independente, os humanos (um epíteto antiquado) recriaram no século 21 novos mitos para explicar aquilo que não compreendiam. Por isso, odiavam intelectuais, pisoteavam o saber científico, desprezavam a pluralidade das formas de vida e ameaçavam aqueles que se indispunham contra seu exército. Aliás, a nova humanidade adorava fardas e palavras de ordem. Havia um fetiche quase generalizado pela obediência cega. Ou oito, ou oitenta. Elaborar mediações era trabalhoso demais – os “novíssimos” seres humanos, impulsionados por aquilo que pensavam ser liberdade de expressão, mentiam de forma vergonhosa e acusavam os outros daquilo que só eles poderiam ser: babacas!

Aquele que criou tudo decidiu abandonar todos. Ele não estaria mais acima de ninguém. O ânimo lhe havia sido ofuscado pela imagem de um mito tosco andando a cavalo, acenando para as pessoas que ele despreza e quer ver mortas. Não havia mais o que fazer: seus filhos estavam perdidos.

Como não era um pai apocalíptico, delegou aos filhos sensatos que lhe restara a responsabilidade de corrigir o rumo da prosa, entendendo que boas doses de poesia eram urgentemente necessárias. Nomeou, então, os homens e as mulheres que conseguiram escapar às polarizações e às pulsões de morte. Certificou-se de que o fanatismo estaria fora de questão. Afastou também os indivíduos que a todo momento invocavam seu nome (detestava puxa-sacos). Apostou suas últimas fichas na democracia, essa menina tão bonita e maltratada.

Fechou a porta do paraíso, jogou a chave no Oceano Pacífico e pensou em voz alta: “Seja o que eu não quiser”.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]